Na Rua do Pinheiro

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O Clube das Bruxas Malvadas

Aproxima-se o Dia das Bruxas que é a 31 de Outubro. Para comemorar esse dia escrevi uma história sobre bruxas. Trata-se da Bruxinha Filó que quer pertencer ao Clube das Bruxas Malvadas. Ora leiam lá para ficarem a saber o que é que aconteceu:
O Clube das Bruxas Malvadas


     A bruxinha Filó estava muito contente. Acabara o Curso de Bruxaria com uma boa nota. Era, finalmente, uma bruxa. Mas, não bastava ter o diploma de bruxa. Tinha de fazer parte do Clube das Bruxas Malvadas, um clube que existia há muitos anos na zona onde Filó vivia. Como fazer para pertencer ao Clube …?
          Soubera na escola que as Bruxas Malvadas reuniam-se todas as sextas feiras, à meia-noite, na Floresta Encantada. Filó receava o escuro da noite mas a vontade de pertencer ao Clube das Bruxas Malvadas era tão grande que tudo faria para ser uma Bruxa Malvada.
          Quando chegou a meia-noite de sexta feira a bruxinha Filó vestiu o seu vestido preto que lhe dava pelos tornozelos. As mangas eram tão largas que por vezes a atrapalhavam nos movimentos dos braços. Colocou na cabeça o grande chapéu bicudo, agarrou o seu gato preto Carvão e lá seguiu para a Floresta Encantada. Tremia de medo e parecia-lhe ouvir barulho por trás de todas as árvores e arbustos. Até que chegou à clareira onde o Clube se reunia. No centro havia um caldeirão ao lume que deitava um fumo negro que se misturava com as folhas das árvores.
          As bruxas ainda não tinham chegado. Filó escondeu-se por trás de uma árvore e ali ficou à espera das Bruxas Malvadas.
          Passado algum tempo começou a ouvir umas risadas muito esquisitas e uns gritos que vinham do céu:

Somos as Bruxas Malvadas!
Ah! Ah! Ah! Ah!Ah!
Mais maldade do que a nossa
não há

          Filó ergueu os olhos para o céu escuro. As bruxas chegavam montadas nas suas vassouras de palha. Continuaram a rir dando duas voltas à clareira. Todas traziam um gato negro, de olhos amarelos brilhantes, também sentados nos paus das vassouras.
          Desceram em grande alarido e dirigiram-se a um canto da clareira onde deixaram todas as vassouras. Perto dali, estava escrito numa folha de papel: 


Parque de Estacionamento
de Vassouras

          Sentaram-se ao redor do caldeirão. Os gatos enroscaram-se e, metendo os focinhos entre as patas, prepararam-se para dormir uma soneca.
          Uma das bruxas, que pareceu a Filó ser a mais importante do grupo, subiu para cima de um estrado e começou por dizer:
- Queridas Bruxas Malvadas, obrigada por terem vindo à nossa habitual reunião. Como vêm temos aqui um caldeirão que contém a Poção Mágica da Força e da Malvadez. Sirvam-se à vontade. Bruxa Mároska, aconselho-a a beber a Poção porque acho que anda muito fraca para fazer as suas maldades.
- Sim, Bruxa Malvadina – respondeu a Bruxa Mároska – irei seguir o seu conselho.
- Eu também vou beber – disse a Bruxa Cartuxa - Quando alguém me chama bruxa começo a rir em vez de fazer uma maldade e, assim, as pessoas hão-de julgar que já não sou má.

          Mexeram muito bem a poção com uma grande colher de pau e encheram as tigelas. Depois sentaram-se para saborearem a Poção da Força e da Malvadez que a Bruxa Malvadina tinha preparado.

         A bruxinha Filó achou que era a melhor altura para aparecer. E, enchendo-se de coragem, dirigiu-se às Bruxas Malvadas. A Bruxa Malvadina que foi a primeira a reparar nela, gritou:
- Quem és tu? Que estás aqui a fazer? – Reparando na roupa que Filó trazia vestida, acrescentou:
 – És uma Bruxa?
- Sou…sim… - gaguejou a bruxinha Filó – Tirei o Curso de Bruxaria há pouco tempo… e vim à vossa reunião porque gos…gostaria muito de pertencer…ao… Clu.. ao Clube das Bruxas Malvadas.
          As Bruxas Malvadas riram com gosto. Aquela desconhecida queria ser bruxa!
- Ah! Ah! Queres ser bruxa? Onde está teu gato? - Perguntou a Bruxa Mároska
- Está aqui…
-Parece-me um belo gato de bruxa… - murmurou a Bruxa Malvadina olhando pensativa para Carvão – Está aprovado.
 -Também tens um caldeirão? – Perguntou a Bruxa Cartuxa perdida de riso.
- Não…não tenho… Mas tenho o diploma…que me deram quando acabei…acabei o Curso.
          Rebentaram novamente as gargalhadas.
-Ah! Ah! Um diploma! Ah! Ah!
- Como te chamas? – Perguntou a Bruxa Malvadina que era a única que não se ria.
- Filó.
          Mais gargalhadas soaram
- Filó! – Ah! Ah! Ah! Que bonito nome de bruxa! Ah! Ah!
- Bruxas Malvadas – gritou a Bruxa Malvadina – peço-vos que não se riam. 
- Desculpe Bruxa Malvadina, mas dá vontade de rir.
- Vamos dar-lhe uma oportunidade. – E dirigindo-se a Filó. - Para pertenceres ao Clube das Bruxas Malvadas tens de contar algumas maldades que fizeste.
          Filó ficou muito contente. Tudo faria para pertencer ao Clube. Pensou nas maldades que fizera e que poderiam agradar às Bruxas Malvadas.
          Que iria acontecer? Será que as Bruxas Malvadas aceitariam as maldades que ela cometera?
          Filó subiu para o estrado e começou:
- Fui um dia passear para o jardim e vi umas pessoas que estavam a comer em cima da relva. Quando acabaram de comer deitaram todo o lixo para o chão. Antes de se irem embora eu aproximei-me delas e disse as Palavras Mágicas:

Abracadabra nariz de cabra
O lixo no chão não é para ficar
Abracadabra nariz de cabra
Eu faço um bruxedo não conseguem andar

          Tentaram sair do lugar mas não conseguiam. Os pés ficaram colados ao chão. Estavam cheias de medo. Só as soltei quando prometeram pôr todo o lixo num saco e nunca mais fazerem o mesmo.

- Que grande maldade! – Disseram as Bruxas em coro – Está aprovada!

          Filó continuou:

- Encontrei na Floresta um homem que estava a fumar. Não teve cuidado e deitou o cigarro para o chão pegando fogo a uma árvore. Preparava-se para fugir mas eu aproximei-me dele e disse as Palavras Mágicas:

Abracadabra nariz de cabra
Não podes fugir tens de aprender
Abracadabra nariz de cabra
Eu faço um bruxedo o teu cabelo vai arder

          O cabelo do homem começou a arder e ele muito aflito jurou nunca mais deitar os cigarros para o chão. Apagou o fogo e fugiu aterrorizado com a cabeça chamuscada, da cor dos nossos gatos.

- Que grande maldade! – Disseram outra vez as bruxas em coro – Está aprovada!

- Muito bem! – Disse a Bruxa Malvadina – A partir de hoje fazes parte do Clube das Bruxas Malvadas. Como Filó não é nome para uma bruxa passarás a chamar-te Bruxa Crueldite. E mereces beber a nossa Poção da Força e da Malvadez.
          Todas concordaram com o que a Bruxa Malvadina tinha decidido.
          A Bruxa Crueldite sentou-se entre elas. Estava feliz por finalmente ser uma Bruxa Malvada. Bebeu a Poção e logo sentiu muita força e vontade de praticar mais maldades.

- No Dia das Bruxas farás muitas maldades connosco. – Disse a Bruxa Cartuxa - E agora só falta ensinar-te a receita da Poção Mágica da Força e da Malvadez. É assim:

Cem gramas de pó de lagarto
Cinquenta gramas de línguas de sapo
Bem raladinha casca de limão
E uma colher bem cheia de açafrão.
Dez lagartas fritas em azeite
E misturar bem uma chávena de leite
Uma dúzia de ovos de serpente
Mais um litro de água quente
Passar tudo bem pelo passador
Com um pouco de sal para dar sabor.

- Obrigada Bruxa Cartuxa. Para a próxima reunião eu é que farei a Poção Mágica. 
- Não esquecemos o teu prémio. – Disse a Bruxa Cartuxa – Aqui está!

          A Bruxa Crueldite ficou encantada. O seu prémio era uma vassoura! Como estava feliz! Radiante sentou-se na vassoura acompanhada pelo Carvão. E voou pelo céu, soltando gargalhadas de contentamento. Todas as outras Bruxas Malvadas a seguiram e o eco das suas vozes soava na noite escura:


Somos as Bruxas Malvadas!
Ah!Ah!Ah!Ah!Ah!
Maior maldade do que a nossa
                                                         Não há!

                                                                                        Eugénia Edviges


Um grande xi-coração embruxado
                                                                                              

O Senhor Pouca Sorte - Luisa Ducla Soares

História retirada do livro "Gente Gira" de Luisa Ducla Soares. As ilustrações são de Pedro Leitão. Tenho a certeza de que se irão rir um pouco.

Aquele rapaz nasceu numa sexta feira, dia treze, daí a sua pouca sorte.

Nunca apanhou uma doença para poder faltar à escola.
Que pouca sorte!

Saíam-lhe sempre automóveis nas rifas. Já tinha 17 carros, sem ter carta de condução.
Que pouca sorte!

Comprou uma galinha, pois queria ovos frescos, para fazer omeletes. Mas a galinha só punha ovos de ouro.
Que pouca sorte!


 Foi para a guerra como cozinheiro dos generais. Aumentou trinta quilos comendo pudins ao pequeno almoço, um peru ao almoço, dez gelados ao lanche, um bacalhau ao jantar. Nem sequer foi condecorado.
Que pouca sorte!

Quando caiu o helicóptero em que viajava, foi pousar, são e salvo, em cima de uma cerejeira. Logo ele, que não gostava de cerejas.
Que pouca sorte!

O ladrão que lhe assaltou a dispensa para roubar chouriços deixou ficar, por esquecimento, um saco com pulseiras, brincos, anéis de brilhantes e colares de pérolas. Tudo jóias para senhora.
Que pouca sorte!

Nunca casou porque tinha tantas namoradas, que não sabia qual havia de escolher.
Que pouca sorte!

Se lá em casa rebentava um cano ou entrava chuva pelo telhado, não tinha senhorio que lhe pagasse o conserto, porque era ele o dono da casa.
Que pouca sorte!

Mandou abrir um poço no quintal para regar a hortaliça. Mas do poço, em vez de água, saltou um repuxo de petróleo.
Que pouca sorte!


Um grande XI-    

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Histórias da Rua do Pinheiro - II Capítulo

          
 As ilustrações são do Zé Lima


            Hoje, zangámo-nos durante a brincadeira na rua. Uns queriam jogar à semana, outros às rodas e não havia meio de nos decidirmos. E, quando isso acontece, chamamos Lingrinhas ao Zé Luís, gorducha à Ana, vaidosa à Vera e tudo o mais que nos vem à ideia.
            Eu tentei arranjar alguma coisa que nos entusiasmasse, mas em vão. Ainda por cima, o Fernando tropeçou no Pinotes que corria atrás do gato da senhora Gertrudes. Ficou com o joelho a sangrar e está claro, a Vera é que pagou as favas:
- O teu cão devia estar preso! – Gritou ele, zangado – Se fosse meu não só o prendia como lhe dava com o cabo da vassoura!
 - És mau... – choramingou a Vera – O Pinotes é um cãozinho meigo...não tem culpa de tropeçares nele...
             Como devem calcular foi uma noite para esquecer. E para agravar a situação a senhora Eulália não veio hoje sentar-se à porta como de costume. A filha disse-nos que estava adoentada e deitou-se um pouco mais cedo.
               A senhora Eulália é uma velhota fixe. Tem oitenta anos, mas lembra-se de todas as peripécias que lhe aconteceu em criança, mesmo dos pormenores mais insignificantes. Quando esgotamos as nossas brincadeiras preferidas ou estamos de mau-humor, como aconteceu hoje, ela costuma chamar-nos para ao pé de si e conta-nos uma história. Sentamo-nos no chão, ao seu redor, e ali ficamos com os olhos presos nos seus lábios engelhados a ouvir contar histórias de encantar.
                 Já por várias vezes a senhora Eulália esteve às portas da morte. A última vez esteve tão mal, tão mal, que a família estava convencidíssima que não passaria daquela noite. Mandaram vir o padre para rezar as últimas orações, meteram de parte a roupa que levaria para o outro mundo e preveniram o cangalheiro. A filha e o genro foram à loja do senhor Carlos e compraram umas calças pretas, uma saia preta, dois casacos pretos e meias pretas para o que desse e viesse.
                  Mas passou a noite e nada aconteceu. A família deitou-se pela madrugada. Eles sim, estavam “mortos” de sono.
                  No dia seguinte, quando a filha se levantou e se dirigia à casa de banho, julgou ver um fantasma: a mãe estava sentada à mesa da cozinha, vestida com a roupa que envergaria se morresse, lenço atado ao alto da cabeça, direita que nem uma rocha. Disse, enquanto batia com a bengala no chão:
- Então hoje não se come nesta casa!? Estou doente mas não estou morta! Venham de lá essas sopas de leite...!
                   A senhora Eulália é fixe!
                   O Fernando foi a casa para a mãe lhe pôr um penso na ferida.
                    Nós ficámos, sentados no passeio, queixos sobre os joelhos, sem atinarmos com nada para fazer.
                    O Pinotes, deitado no chão, à nossa frente, focinho preto entre as patas brancas, parecia entender o nosso drama.
- Tenho uma ideia! – Gritei.
                    Olharam-me amedrontados. Todos dizem que as minhas ideias não são de fiar. São uns cabeças de alho-chocho que não compreendem a minha veia criativa. Eu bem tento que eles compreendam, mas é inútil.
- Estou farto das tuas ideias! – resmungou o cabeçudo do Eduardo – Ainda me lembro do castigo que a minha mãe me deu, por ter ido às gavetas da cómoda buscar lençóis brancos para brincarmos  aos fantasmas!... Vê lá se os foste buscar à tua casa! Pudera!...Eu é que paguei...
- Se calhar querias que eu desse as ideias e o material, não?
                A Rita, que me defende sempre, lembrou:
- Lembram-se do roubo das laranjas no quintal do senhor Viriato? Também foi ideia da Teresa. Mas apesar de ter começado mal, acabou em bem...
                 Na verdade foi uma aventura com um desfecho imprevisto. O senhor Viriato é viúvo. Vive numa casa baixinha, cujo quintal dá para uma das esquinas da rua. É uma pessoa muito taciturna. Mal cumprimenta as pessoas e olha-nos de lado, quando as nossas brincadeiras nos empurram para a sua porta.
                  No quintal tem três laranjeiras, de frutos sumarentos, mas ai de quem tenta espreitar pelo pequeno portão de madeira, intransponível, para olhar as árvores! Logo aparece o senhor Viriato, de olhar aterrador.
                   Numa daquelas noites em que não temos imaginação, tive a ideia espectacular de irmos roubar duas ou três laranjas ao quintal do senhor Viriato. Todos concordaram.
- Por ele ser tão antipático... – disse o Lingrinhas com raiva na voz.
                   Junto à casa do Senhor Viriato não existe nenhum candeeiro de iluminação pública. Era quase meia-noite. As vizinhas já se tinham recolhido. Estavam reunidas as condições para o assalto.
                   O Lingrinhas e a Rosa, por serem os mais pequeninos dobraram-se, junto ao muro, para servirem de trampolim.
- O Eduardo, a Vera e a Ana sobem pelo Lingrinhas -  disse eu num murmúrio –  O Fernando e a Rita sobem pela Rosa.
- Eu não sou Lingrinhas, ouviste?
- Shiiiiiu! – Fizeram todos ao mesmo tempo.
                   Por momentos, ficámos silenciosos e quietos, à espera de algum barulho que pudesse vir de dentro de casa. Mas o senhor Viriato não deu sinal de vida.
- Então e tu? O que é que fazes? – Perguntou o Fernando.
- Eu – expliquei com importância – escolhi para mim o trabalho mais arriscado: ficarei a vigiar a esquina, porque nunca se sabe o que pode acontecer...
                    Acenaram com a cabeça em sinal de assentimento, embora não muito convencidos do perigo a que estavam sujeitos. Se fui eu que tive a ideia, era natural que fosse eu a sujeitar-me ao perigo, não acham?
- Agora, esperem um pouco até eu lhes dar o sinal de ataque. Vou para a esquina vigiar a retaguarda.
                     Devagarinho, pé ante pé, roçando as costas no muro do senhor Viriato, cheguei à esquina. Eles aguardavam o meu sinal para subiram para as costas do Lingrinhas e da Rosa. O Pinotes atravessou-se nas minhas pernas. Pensava, talvez, que brincávamos às escondidas.
- Quieto Pinotes! Sentado!
                     Sentou-se, de orelhas pendentes, sem compreender a situação.
                      Com mil cuidados, olhei para a travessa onde morava a senhora Gertrudes. A luz do quarto estava acesa. Será que a senhora Gertrudes não tinha sono? Pedi a Santa Teresinha para que o gato não viesse naquela altura fazer chichi.
 - Nada a bombordo, nada a estibordo... – pensei – Está na hora! 
                       Fiz então sinal aos assaltantes para iniciarem a “tomada do quintal do senhor Viriato”.  Subiram para as costas dos mais pequenos e um...dois...três! Pernas alçadas sobre o muro e a aterragem do outro lado! Mas, qual não é o meu espanto quando aos meus ouvidos surgem os mais estranhos ruídos! Ouvia-se distintamente as vozes dos meus colegas a gritarem palavras que não tinham razão de ser para a ocasião:
“Ai”...”Ui”... “Ajudem-me, tenho o cabelo preso”... “Ai”, “Ai”... “Ai, tenho picos nas pernas”...
                       Olhei para o Lingrinhas e para a Rosa, que estavam tão aterrados como eu! Que teria acontecido? Tentámos ver o que se passava no quintal, mas foi em vão: o portão não tinha qualquer abertura por onde pudéssemos espreitar. Existia apenas uma nesga entre a parede e as dobradiças do portão, que era insuficiente para conseguirmos ver a tragédia.
                       De repente, o quintal iluminou-se ao mesmo tempo que a porta da cozinha se abria. E uma voz de trovão fez-se anunciar:
- Quem está aí?
                      Temia pelo que podia acontecer ao Fernando e aos outros. E, heroicamente, gritei:
- Senhor Viriato, não lhes faça mal! A culpa foi minha!
                   O senhor Viriato abriu o portão, que rangeu. Olhou para nós, de olhar ameaçador.
- Entrem! – disse, entre dentes.
                    A Rosa, agarrada ao meu vestido, começou a soluçar, enquanto dizia:
- “Telesa”, eu “quelo” “il” “pala” a minha mãe...O “senhol” “Viliato” vai “matal” a gente...
                     Naquela altura fiquei sem resposta para lhe dar.
                      Entrámos devagar. Decerto que aquele caminho nos levaria à forca ou, na melhor das hipóteses, à prisão. Lembro-me de ter pensado onde ficaria a prisão mais próxima.
                    O que vimos deixou-nos estupefactos. Os assaltantes tinham caído direitinhos em cima das roseiras do senhor Viriato! O Fernando e a Ana tinham a cara toda arranhada. A Vera, esforçava-se por soltar o cabelo loiro dos picos . A Rita soluçava, enquanto olhava para um grande rasgão no seu vestido azul.  O Eduardo tentava soltar o calção dos picos de uma roseira cor de fogo e o Pinotes saltitava ao redor deles, dando muito ao rabo. Continuava a julgar que brincávamos às escondidas.
                     O senhor Viriato ajudou-os a levantarem-se e no fim disse:
- Ora vamos lá a saber, o que é que queriam do quintal?
                     Olhámos uns para outros sem atinarmos com uma resposta. Instintivamente, todos me fitaram à espera que eu tivesse uma solução. Perdidos por dez, perdidos por mil e então disse, corajosamente:
- A culpa é minha, senhor Viriato. Não lhes faça mal. Eu é que tive a ideia de virmos roubar laranjas...Eu é que mereço o castigo. Se alguém merecer a prisão, sou eu, só eu... e não eles...! Considero-me culpada! (Tinha ouvido esta frase numa série da televisão e achei que se ajustava perfeitamente).
                       O senhor Viriato coçou a cabeça. Olhou para nós e mostrando pela primeira vez os dentes, disse divertido:
- O quê? Tudo isto por causa das laranjas? Se é esse o problema...
                        Agarrou num saco que estava pendurado numa das laranjeiras e começou a enchê-lo de bonitas laranjas baía.
- Tomem. E façam bom proveito... Para a outra vez, quando quiserem laranjas, basta pedirem...Eu não sou nenhum papão.
                         Sim, o senhor Viriato, não é nenhum papão. Afinal o senhor Viriato é fixe!
                         Agradecemos ao senhor Viriato e saímos. Ainda não estávamos em nós! Eram emoções a mais para uma noite só!
                          Tínhamos dado alguns passos, quando o senhor Viriato gritou, perdido de riso:
- E antes de saltarem ao muro, experimentem primeiro o portão...! É que o portão estava aberto...                       
                          Fomos para casa completamente envergonhados. Eu, como responsável, não fiz nenhum comentário.
- Sim, avó, já me vou deitar...
                          Está na hora de ir para a cama...Oxalá a senhora Eulália melhore...

                                                                                        Eugénia Edviges
Um grande XI-    


terça-feira, 11 de outubro de 2011

O Senhor Pires Procura Noiva - António Torrado






Texto: António Torrado
Ilustração: Cristina Malaquias
Do Livro: 100 Histórias à Janela



    O senhor Pires sente-se muito só. Em tempos lá para trás teve par, conchego, companhia a condizer com o seu estilo, mas houve uma desgraça e a companheira de muitos anos partiu. Isto é: partiu-se no lava-loiça da cozinha.
    Eu explico melhor. A companheira do senhor Pires tinha um rebordo de entrançado de flores e era leve, levíssima, fina, finíssima, feita de porcelana vidrada, elegantemente pintada por mão de artista. Chávena como ela não haveria muitas.
- Escorregou-me... - desculpava-se a desajeitada mão que a lavava à torneira.
    Pobre chávena, desfeita em cacos!
    O senhor Pires, apesar de ser do mesmo fabrico e da mesma idade, gostava de a tratar por menina Chávena e trazia-a sempre ao colo. Perdê-la foi, por isso, para ele, um grande desgosto.
Sozinho, sem par a condizer, o senhor Pires vivia a sua inutilidade num canto sombrio do armário da cozinha.
Até que decidiu pôr um anúncio:

                                                   PROCURA-SE
             Chávena de sólida formação para convívio e possível matrimónio.
                                                    Assunto sério.

    Se tivesse um feitio mais afoito, mais descansado, punha-se à janela, a apregoar: "Quem quer, quem quer casar comigo, que sou gentil e bom amigo?" Mas o senhor Pires não conhecia a história da Carochinha.
    Apresentou-se primeiro uma caneca dessas almoçadeiras, de asa robusta, muito vistosa, muito garrida, muito risonha.
- Desculpa, mas não és o meu género - disse o senhor Pires. - Se fosses mais pequena...
    A seguir veio uma tigela de sopa.
Gabava-se de ser de sólida formação e de não rachar nem por nada.
- És grande de mais, desculpa - disse o senhor Pires. - Podias desiquilibrar-me e quem se partia era eu.
    Apresentou-se depois uma discreta chávena de chá, já um pouco esbeiçada do muito uso.
    O senhor Pires também não a aprovou.
- Desculpa, mas acho que não temos os mesmos objectivos...E quando o casal não tem os mesmos objectivos, a ligação não resulta.
    Até que lhe apareceu a chávenaque lhe convinha.  Condiziam na leveza da porcelana, nos desenhos, em tudo...
    Ela também estava sozinha. O respectivo pires partira-se numas mudanças. Azares de loiça fina!
- Somos do mesmo serviço -encantou-se o senhor Pires. - Temos uma vida a dois à nossa frente.
    E, de facto, durante anos e anos serviram muitos cafezinhos.





Um grande XI-