Outra lenda da minha terra com uma versão da minha autoria. Para isso consultei dois livros editados pela Câmara Municipal de Benavente. São eles: "Aspectos da Religiosidade Popular do Concelho de Benavente" de Mário Justino Silva e Maria Filomena Santos Henriques e "O Convento de Jenicó" de Alfredo Betâmio de Almeida.
As Lendas de S. Baco, o
Mártir
Mandado
construir em 1542 por D. Luís, o convento erguia-se entre Benavente e
Salvaterra de Magos rodeado por campos de searas. Construção austera, feita de
materiais grosseiros. O acesso era feito por caminhos de terra batida. Tinha
uma capela, um refeitório e um dormitório, este situado no primeiro andar. Nesse
convento ficou instalada a Ordem dos Frades Capuchos da Arrábida, que ali
viviam em penitência, austeridade e sem conforto, sobrevivendo apenas com caldo
e pão. A sua indumentária era composta por capucho de burel. Andavam descalços
e de cruz ao peito.
O
santo idolatrado pelos frades capuchos era S. Baco, o Mártir, cuja imagem
estava exposta na capela do convento. Ali acorriam os camponeses a quem as
árvores de fruto adoeciam com o pulgão. Acreditavam, com devoção, que o santo podia
livrar as árvores daquela praga. Eram muitos os que procuravam as curas para os
seus males junto de S. Baco, embora a sua imagem, com cerca de um metro de
altura, seja desproporcionada, tendo apenas alguma beleza no rosto e nas
barbas. Era também considerado o advogado contra as sezões. Por isso mesmo, as
costas do santo estão gastas, devido às raspagens provocadas pelas pessoas. O
pó assim obtido, “pó de santo”, era misturado com água que, pensavam, curava as
malditas febres.
Certo
dia um camponês, como forma de agradecer a S. Baco o ter arranjado emprego na
apanha da uva, levou um grande cacho de uvas que depositou aos pés da imagem. O
cacho ali ficou durante vários dias mantendo-se sempre fresco.
Entretanto,
o camponês foi despedido sem o esperar. Revoltado, voltou à capela e, agarrando
no cacho de uvas, comeu-o sofregamente, enquanto dizia muito zangado:
- Fui parvo em acreditar em ti, S.
Baco. Nunca mais te farei ofertas. És um santo muito feio.
Saiu
a cambalear. Conseguiu chegar a casa com muito esforço, vindo a falecer pouco tempo
depois.
A
notícia correu célere, galgando montes e povoados. A partir dessa altura
ninguém arriscava rir-se da fealdade do santo com receio de lhe acontecer algum
azar.
Passaram
os anos. O convento fora deixado pelos frades em 1834 e apenas o povo, devoto,
continuava em peregrinação à capela de S. Baco.
Aquele
dia, que amanhecera cinzento, prometia tempestade. Os cães uivaram toda a manhã
e as nuvens enroladas em poeira, tenebrosas, pareciam sufocar as casas e os campos.
O vento soprou em redemoinho. E o pior aconteceu: a terra tremeu como se dentro
de si estivesse um monstro a rugir com fúria.
O
povo olhava com pavor o convento destruído pelo abalo. Mas a imagem lá estava,
no seu nicho da capela, rodeada pelos escombros. Com o peito em fogo
ajoelhou-se e rezou perante a imagem imaculada.
- Milagre! – Gritavam, ao verem a
imagem, intacta, no seu lugar.- Como é possível?
- O melhor é levá-lo daqui para outro
lugar. – Opinou alguém entre a multidão.
- Para a Igreja Matriz… - respondeu uma
voz num sussurro.
Todos
acharam bem. Antes que houvesse alguma réplica do abalo era urgente levar a
imagem para lugar seguro.
Depressa
arranjaram uma junta de bois que seria guiada pelo campino mais experiente da
lezíria.
No
dia seguinte, ainda mal o sol despontara já o campino estava junto da imagem
com a junta de bois encangada ao cabeçalho da carroça de madeira. Exibia a vara
de ferrão que o ajudaria a encaminhar a junta em direcção à igreja matriz da
vila.
Chegaram
os moços mais fortes e morenos da vila para ajudarem a carregar a imagem de S.
Baco para cima da carroça.
Algumas
mulheres, de Salvaterra de Magos e de Benavente, juntaram-se em grupo na
encruzilhada do caminho de terra batida. De lenços na cabeça e de dedos
cruzados sobre o peito rezavam uma oração em surdina enquanto os trabalhos
decorriam.
Não
demorou muito. S. Baco, no meio da carroça, de braço direito um pouco
soerguido, parecia guiar a junta de bois.
- Vamos embora! – Gritou o campino para
os animais, picando-os com a vara.
Os
animais iniciaram a marcha. Tudo correu bem até à encruzilhada que serve as
duas localidades. Estacaram e não parecia que quisessem recomeçar o andamento.
- Vá! Embora! – Gritava o campino tentando conduzir a junta
através do caminho.
Mas
nada. Apesar das investidas com a vara, o campino não conseguia que os bois se
movessem do lugar onde estavam. As tentativas eram inúteis.
Todos
empurravam a carroça enquanto o campino, de rosto suado, puxava os bois pela
frente.
Pouco
a pouco os ânimos foram esmorecendo. Que fazer? O que é que tinham os animais?
- É obra de S. Baco. – Murmurou uma
velhota vestida de preto e de xaile pela cabeça.
- Quererá ir para Salvaterra? – Perguntou
a sorrir um dos ajudantes.
Todos
se entreolharam. Talvez. Porque não?
Ilustração na página 56 do livro "O Convento de Jenicó". Desenho de João da Silva
O
campino puxou os bois para o lado de Salvaterra. Com a vara encaminhava-os
enquanto gritava:
- Volta boi! Ei!
Perante
a admiração de todos, os bois recomeçaram a marcha em direcção a Salvaterra de
Magos. Mas eis que, andados escassos metros, as rodas da carroça ficaram atoladas
no barro do caminho! Desanimados, os ajudantes e o grupo de curiosos,
sentaram-se à borda do campo cultivado, sobre as ervas altas e os tufos de
malmequeres da cor do sol.
Não
sabiam que dizer nem que opinar. O poder de S. Baco era enorme e nada mais
iriam conseguir.
- Aproxima-se alguém…- disse o campino
segurando ao alto a vara de ferrão. Colocara o barrete sobre os ombros para
limpar o suor da testa pelo esforço despendido.
Olharam. Aproximava-se devagar, apoiado a um bordão, um velhote de barbas espessas
e grisalhas. Ninguém o conhecia. Parou frente à junta de bois e pousando as
mãos sobre a cabeça dos animais, murmurou num fio de voz:
- Voltem para trás para o nicho da
capela, que o carro andará imediatamente…
O
campino assim fez impelindo os animais a retrocederem.
- Ei! Volta boi! Embora!
Como
por milagre os bois voltaram com a maior das facilidades e o regresso ao
convento fez-se rapidamente e sem esforço algum.
No
fim, contentes do dever cumprido, todos procuraram com o olhar o velhote das
barbas para agradecerem. Mas desaparecera sem que ninguém reparasse no caminho
que seguira.
De
novo se ouviu a voz da velhota vestida de preto e de xaile pela cabeça:
- Era o S. Baco…! Era o S. Baco!
Persignaram-se
batendo forte no peito e na testa.
As
lendas de S. Baco mantiveram-se até aos nossos dias, passando de boca em boca,
de geração em geração. Talvez um pouco adulteradas pela imaginação do nosso
povo. E pela criação de um escritor.
Agora o dicionário:
sezões - febres altas provocadas pela picada do mosquito (paludismo)
encangada - quando a junta de bois está presa na canga (peça que se coloca sobre a carroça)
persignar - fazer o sinal da cruz na testa, nos lábios e no peito
Eugénia Edviges /Setembro 2013
Uma grande xi-coração