Na Rua do Pinheiro

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A Menina Desmazelada - História Tradicional

Eis um conto tradicional que retirei de um livrinho muito antigo (Talvez de 1958/60) publicado pela Editorial Infantil Majora. Contém contos adaptados da tradição popular por Costa Barreto e ilustrações  de César Abbott. Como as ilustrações são a preto e branco, tive a ousadia de colorir a ilustração deste conto:


 A Menina Desmazelada

Havia uma menina muito desmazelada. Foi pedida por um rapaz em casamento, e o pai da menina disse ao rapaz que esta não lhe servia, por ser muito desleixada.
- Deixe-a comigo - respondeu o moço.
Casaram e o marido foi com a mulher para a sua casa.
O marido foi trabalhar para o campo e só voltou a casa à noite. Encontrou a mulher sentada com os braços cruzados, sem jantar feito, a casa por varrer e a loiça por lavar.
 O marido varreu a casa, lavou a loiça, preparou o jantar e sentou-se, sozinho à mesa para comer.
Ao primeiro bocado que meteu na boca, disse:
- Este é para quem varreu a casa.
Ao segundo bocado, disse:
- Este é para quem lavou a loiça.
Ao terceiro bocado, disse
- Este é para quem fez o jantar.
E assim foi até papar sozinho o seu jantar.
- Vamo-nos deitar. - disse para a mulher.
Deitaram-se. No dia seguinte repetiu-se a mesma cena, mas, ao terceiro dia, quando ele recolheu a casa, encontrou-a varrida, a loiça lavada e o jantar preparado. Ambos comeram muito satisfeitos.
Alguns dias depois do casamento, disse o pai da rapariga:
- Vou ver a minha filha e o meu genro! O que não iá lá por casa! Uma vergonha! Daquela não faz o marido nada com jeito. Vou vê-los.
Partiu. Quase a chegar ao monte, viu à porta uma mulher, a fiar. Apenas a mulher o avistou, gritou-lhe:

Ó meu senhor da mula
Traga boa "charamusga"
Que na casa deste "home"
Quem não trabalha não come.



Um grande XI-    





terça-feira, 17 de janeiro de 2012

História com Cheiro a Morango - Alice Vieira




 História retirada do "Livro Com Cheiro a Morango"
Texto de Alice Vieira
Ilustração de Carla Nazareth


 Decorria lentamente a tarde quando a senhora Duquesa disse:
- Gastão, traz-me uma chávena de leite.
Gastão, que era mordomo e muito bem educado, respondeu:
- Senhora Duquesa, não há leite.
  A senhora Duquesa, muito admirada, perguntou:
- Mas porquê, Gastão? Será que as nossas vacas deixaram de dar leite?
Gastão, que era mordomo e muito bem educado, respondeu:
- A senhora Duquesa deve estar a fazer confusão: não temos vacas. Vivemos num prédio e era completamente impossível tê-las aqui.
  A senhora Duquesa endireitou-se devagar na sua poltrona e disse:
- Então de onde é que vem o leite que diariamente eu bebo?
Gastão, que era mordomo e muito bem educado, respondeu:
- Do supermercado da esquina.
  A senhora Duquesa suspirou longamente e disse:
- E então porque não há leite?
Gastão, que era mordomo e muito bem educado, suspirou ainda mais longamente e disse:
- Porque a senhora Duquesa há mais de cinco meses que não paga a conta. Ainda ontem tentei lá entrar e logo eles berraram: "Não queremos cá caloteiros!"
  A senhora Duquesa franziu a testa e, muito pausadamente, disse:
- Que modos tão grosseiros, Gastão! Queres tu dizer que, se eu não pagar o que devo...
-...não há leite para ninguém.
- Queres tu dizer que, se eu quiser uma chávena de leite, é melhor...
-...pagar rapidamente o que deve.
  A senhora Duquesa voltou a endireitar-se lentamente na poltrona e pensou nas palavras de Gastão.
Pensou bem, pensou muito bem, pensou muitíssimo bem.
Então, suspirando ainda mais longamente, disse:
- Gastão, traz-me uma chávena de chá.


Um grande XI-    

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O Canário Amarelinho


          O canário Amarelinho gostava muito da paisagem que via da varanda onde se encontrava. O céu azul desenhava-se por trás do telhado que ficava em frente. As antenas de televisão pareciam dançar quando o vento andava mais nervoso. Amarelinho soltava os seus alegres trinados quando o gato preto da senhora Madalena passeava no beiral do telhado. As flores da varanda também o distraíam porque eram lindas. Havia petúnias, flores do meio-dia, alegrias da casa e sardinheiras.
             A sua dona, a senhora Adelaide, regava-as todas as manhãs. Enchia o regador de plástico verde e ia e vinha tantas as vezes, quantas as necessárias. Era uma azáfama da cozinha para a varanda, da varanda para a cozinha, da cozinha para a varanda da....até o Amarelinho ficar com a cabeça tonta. Mas era engraçado aquele vaivém da senhora Adelaide.
Quando o sol não está muito quente a senhora Adelaide senta-se na cadeira de praia e crocheta rendinhas em panos da loiça. Panos muito coloridos: amarelos, verdes, vermelhos, aos quadrados, às riscas, às flores…  
A sua dona, a senhora Adelaide, regava-as todas as manhãs.

           O que ele mais admirava era o fim do dia! Sim, antes da senhora Adelaide tapar a gaiola conseguia admirar o pôr-do-sol! Àquela hora, uma mão invisível dava grandes pinceladas em tons de amarelo e laranja sobre os telhados!
           Nunca saíra da gaiola, nunca conhecera mais nada além daquilo que via todas as manhãs. Aquela varanda era o seu mundo, a sua alegria. E envaidecia-se com o carinho que a senhora Adelaide demonstrava por ele.
                     Certo dia estava o canário Amarelinho, mais uma vez, a olhar para o gato da vizinha Madalena que passeava dengoso na beiral do telhado em frente quando surgiu, não se sabe de onde, um animal esvoaçante muito bonito.
          Amarelinho ficou deslumbrado. Sobrevoava de flor em flor batendo suavemente as asas doiradas de riscas pretas, muito finas. Era realmente um espectáculo! Amarelinho ficou de boca aberta, ou por outra, de bico aberto.
 ­ Quem...és tu? – Perguntou curioso.
          O estranho animal parou, ficando suspenso no ar:
 - Eu sou a borboleta Doirada! Que estás a fazer aí dentro?       
- É uma gaiola…a minha casa… – respondeu Amarelinho.
- O quê? A tua casa!? Mais parece uma prisão.
- Prisão!? O que é isso?
- Prisão é um sítio de onde não se pode sair. Nunca saíste dessa caixa…?
- Não, não conheço nada para além do que vejo todos os dias.
- Que esquisito… Então, não conheces outras aves, não voas?
- Não…Mas gosto muito da minha dona…
- Como é possível haver um pássaro que não conhece este mundo maravilhoso? Assim, nunca serás feliz! Eu posso voar sobre as flores silvestres e sobre as árvores e beber água fresca nos ribeiros.
          Amarelinho ficou pensativo. Voar sobre as flores e as árvores deveria ser maravilhoso. Nunca tinha pensado nisso.
- Vou ajudar-te a conhecer o mundo! – Disse a borboleta Doirada.
- Como? – Perguntou o canário surpreendido.
- Eu sou a borboleta Doirada! Que estás a fazer aí dentro?

- Vou tentar abrir a gaiola.
          Doirada pensou, pensou, mas não lhe ocorria nenhuma ideia. Como poderia uma simples borboleta abrir uma gaiola? Era muito levezinha e não tinha força suficiente para abrir a pequena tranca de arame. Mas tudo é possível entre amigos e a borboleta Doirada já sentia uma grande amizade pelo canário Amarelinho.
-Já sei! – Quase gritou – Amanhã, quando a tua dona vier dar-te água fresca eu vou distrai-la com o meu voo e tu aproveitas a oportunidade para fugir!
           Amarelinho ficou entusiasmado. Não tinha muita certeza de que as coisas corressem tão facilmente, mas não custava nada tentar.
          Combinaram tudo muito bem, acertando todos os pormenores.
           Doirada voltaria no dia seguinte, à hora em que a senhora Adelaide mudasse a água ao Amarelinho.
          Naquela noite, Amarelinho pensou na aventura que o esperava lá fora, nos lugares nunca vistos e que o iriam encantar, principalmente na maravilha de poder voar em liberdade.
          Mas, entristecia-o o facto de deixar a senhora Adelaide! Era uma boa dona. Por vezes até o tratava por “meu passarinho lindo”, que é um termo que Amarelinho adorava ouvir. Todas as noites cobria a gaiola com um pano de lã para ele não ter frio e, por vezes, entalava nas grades uma rodela de maçã, petisco que adorava.
                    Custava-lhe deixar a senhora Adelaide sozinha. Tinha enviuvado há muitos anos e os filhos estavam no estrangeiro. Já nascera um netinho que ainda nem conhecia. Havia fotografias dos filhos e do neto espalhadas pela casa. Muitas vezes ficava parada a olhar as fotografias, enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto envelhecido. E quando se senta a crochetar as rendinhas, fala dos filhos e do neto como se Amarelinho lhe pudesse responder. Além do mais, conseguiria voar? Nunca voara. E, por certo seria apanhado por um animal qualquer que encontrasse no caminho, isto se o gato da senhora Madalena não o apanhasse primeiro…
          Perante tudo isto, como arranjaria coragem para abandonar a senhora Adelaide?
- É difícil tomar uma decisão… – pensou – Se por um lado, desejo ardentemente conhecer o mundo, por outro, gosto muito da senhora Adelaide…
           O sol já espreitava por trás do telhado em frente, quando Amarelinho conseguiu adormecer.
          Acordou com o ruído esvoaçante da borboleta Doirada ao redor da gaiola.
- Então, estás preparado para fugir?- perguntou ela através do pano sobre a gaiola.
- Si…siiimm….
          Doirada voou para uma sardinheira rosa que florescia perto da gaiola.
          De dentro soaram os passos da senhora Adelaide no chão da cozinha.
- Bom dia, meu passarinho lindo! – Saudou ela enquanto retirava o pano de lã que cobria a gaiola.
          Quando a senhora Adelaide abriu a pequenina porta para retirar o bebedouro, a borboleta Doirada esvoaçou com ímpeto ao redor do seu rosto.
- Ui, que é isto? – Exclamou a senhora Adelaide enquanto tentava afastar com as mãos aquele bicharoco.
  
O gato preto da vizinha Madalena lá estava, no cimo do telhado, pavoneando-se com o rabo alçado.

-Depressa Amarelinho! Sai agora! Depressa!
          Amarelinho escondeu o bico sob a asa sem saber que fazer. Pensou que ser livre é muito importante! Mas dar alegria a uma velhota que vive sozinha, também o é! Que faria lá fora se não estava preparado para os perigos do mundo? Que salvação teria frente ao gato da vizinha Madalena? Aqui, no seu cantinho, tinha tudo de que necessitava: comida, água, uma paisagem deslumbrante e, acima de tudo, o carinho e a dedicação da sua dona que, sem ele, não teria ninguém para conversar. Era este o seu mundo. Era ali que se sentia bem.
          - Não. Não vou. – Respondeu Amarelinho com firmeza.
          Doirada não esperava aquela resposta do Amarelinho. Escolher a gaiola em vez da liberdade!?
- Realmente, há gostos para tudo. – Pensou ela.
- Ah, afinal é uma linda borboleta que me assustou. – Exclamou a senhora Adelaide – Amarelinho, repara como é bonita.
- Adeus Amarelinho. – Disse a borboleta Doirada – Tomaste a tua decisão e eu respeito-a. Mas se não te importares virei visitar-te de vez em quando para te contar as minhas aventuras.
-Terei muito prazer em ouvir as tuas histórias. – Respondeu Amarelinho – Vem quando quiseres.
- Adeus. Chegou a hora de partir. Até qualquer dia.
          E voando airosamente abandonou a varanda.
          Entretanto, a senhora Adelaide abrira a cadeira de praia e, sentara-se a crochetar um paninho cor do sol.
- …. Uma laçada…duas malhas de cordão…uma laçada…Ah, como o dia está bonito…! E as minhas flores estão cada dia mais bonitas, tão bonitas que até as borboletas já as procuram…uma laçada…duas malhas de cordão…uma laçada…
           O gato preto da vizinha Madalena lá estava, no cimo do telhado, pavoneando-se com o rabo alçado.
- Sabes, meu passarinho lindo hoje é o dia dos anos do meu neto. Faz três anos.
          E a senhora Adelaide olhou para Amarelinho mostrando um sorriso de felicidade. Amarelinho soltou um dos seus trinados mais bonitos como a agradecer a amizade que a senhora Adelaide demonstrava por ele.

                                                                                        Eugénia Edviges

Um grande XI-