As ilustrações são do Zé Lima
Hoje, zangámo-nos durante a brincadeira na rua. Uns queriam jogar à semana, outros às rodas e não havia meio de nos decidirmos. E, quando isso acontece, chamamos Lingrinhas ao Zé Luís, gorducha à Ana, vaidosa à Vera e tudo o mais que nos vem à ideia.
Eu tentei arranjar alguma coisa que
nos entusiasmasse, mas em vão. Ainda por cima, o Fernando tropeçou no Pinotes
que corria atrás do gato da senhora Gertrudes. Ficou com o joelho a sangrar e
está claro, a Vera é que pagou as favas:
- O teu cão devia estar preso! – Gritou
ele, zangado – Se fosse meu não só o prendia como lhe dava com o cabo da
vassoura!
- És mau... – choramingou a Vera – O Pinotes é
um cãozinho meigo...não tem culpa de tropeçares nele...
Como devem calcular foi uma noite
para esquecer. E para agravar a situação a senhora Eulália não veio hoje
sentar-se à porta como de costume. A filha disse-nos que estava adoentada e
deitou-se um pouco mais cedo.
A senhora Eulália é uma velhota
fixe. Tem oitenta anos, mas lembra-se de todas as peripécias que lhe aconteceu
em criança, mesmo dos pormenores mais insignificantes. Quando esgotamos as
nossas brincadeiras preferidas ou estamos de mau-humor, como aconteceu hoje,
ela costuma chamar-nos para ao pé de si e conta-nos uma história. Sentamo-nos
no chão, ao seu redor, e ali ficamos com os olhos presos nos seus lábios
engelhados a ouvir contar histórias de encantar.
Já por várias vezes a senhora
Eulália esteve às portas da morte. A última vez esteve tão mal, tão mal, que a
família estava convencidíssima que não passaria daquela noite. Mandaram vir o
padre para rezar as últimas orações, meteram de parte a roupa que levaria para
o outro mundo e preveniram o cangalheiro. A filha e o genro foram à loja do
senhor Carlos e compraram umas calças pretas, uma saia preta, dois casacos
pretos e meias pretas para o que desse e viesse.
Mas passou a noite e nada
aconteceu. A família deitou-se pela madrugada. Eles sim, estavam “mortos” de
sono.
No dia seguinte, quando a
filha se levantou e se dirigia à casa de banho, julgou ver um fantasma: a mãe
estava sentada à mesa da cozinha, vestida com a roupa que envergaria se
morresse, lenço atado ao alto da cabeça, direita que nem uma rocha. Disse,
enquanto batia com a bengala no chão:
- Então hoje não se come nesta casa!?
Estou doente mas não estou morta! Venham de lá essas sopas de leite...!
A senhora Eulália é fixe!
O Fernando foi a casa para a
mãe lhe pôr um penso na ferida.
Nós ficámos, sentados no passeio,
queixos sobre os joelhos, sem atinarmos com nada para fazer.
O Pinotes, deitado no chão,
à nossa frente, focinho preto entre as patas brancas, parecia entender o nosso
drama.
- Tenho uma ideia! – Gritei.
Olharam-me amedrontados.
Todos dizem que as minhas ideias não são de fiar. São uns cabeças de
alho-chocho que não compreendem a minha veia criativa. Eu bem tento que eles
compreendam, mas é inútil.
- Estou farto das tuas ideias! –
resmungou o cabeçudo do Eduardo – Ainda me lembro do castigo que a minha mãe me
deu, por ter ido às gavetas da cómoda buscar lençóis brancos para
brincarmos aos fantasmas!... Vê lá se os
foste buscar à tua casa! Pudera!...Eu é que paguei...
- Se calhar querias que eu desse as
ideias e o material, não?
A Rita, que me defende sempre,
lembrou:
- Lembram-se do roubo das laranjas no
quintal do senhor Viriato? Também foi ideia da Teresa. Mas apesar de ter
começado mal, acabou em bem...
Na verdade foi uma
aventura com um desfecho imprevisto. O senhor Viriato é viúvo. Vive numa casa
baixinha, cujo quintal dá para uma das esquinas da rua. É uma pessoa muito
taciturna. Mal cumprimenta as pessoas e olha-nos de lado, quando as nossas
brincadeiras nos empurram para a sua porta.
No quintal tem três
laranjeiras, de frutos sumarentos, mas ai de quem tenta espreitar pelo pequeno
portão de madeira, intransponível, para olhar as árvores! Logo aparece o senhor
Viriato, de olhar aterrador.
Numa daquelas noites em que
não temos imaginação, tive a ideia espectacular de irmos roubar duas ou três
laranjas ao quintal do senhor Viriato. Todos concordaram.
- Por ele ser tão antipático... –
disse o Lingrinhas com raiva na voz.
Junto à casa do Senhor
Viriato não existe nenhum candeeiro de iluminação pública. Era quase
meia-noite. As vizinhas já se tinham recolhido. Estavam reunidas as condições
para o assalto.
O Lingrinhas e a Rosa, por
serem os mais pequeninos dobraram-se, junto ao muro, para servirem de
trampolim.
- O Eduardo, a Vera e a Ana sobem pelo
Lingrinhas - disse eu num murmúrio
– O Fernando e a Rita sobem pela Rosa.
- Eu não sou Lingrinhas, ouviste?
- Shiiiiiu! – Fizeram todos ao mesmo
tempo.
Por momentos, ficámos
silenciosos e quietos, à espera de algum barulho que pudesse vir de dentro de
casa. Mas o senhor Viriato não deu sinal de vida.
- Então e tu? O que é que fazes? – Perguntou
o Fernando.
- Eu – expliquei com importância –
escolhi para mim o trabalho mais arriscado: ficarei a vigiar a esquina, porque
nunca se sabe o que pode acontecer...
Acenaram com a cabeça em
sinal de assentimento, embora não muito convencidos do perigo a que estavam
sujeitos. Se fui eu que tive a ideia, era natural que fosse eu a sujeitar-me ao
perigo, não acham?
- Agora, esperem um pouco até eu lhes
dar o sinal de ataque. Vou para a esquina vigiar a retaguarda.
Devagarinho, pé ante pé,
roçando as costas no muro do senhor Viriato, cheguei à esquina. Eles aguardavam
o meu sinal para subiram para as costas do Lingrinhas e da Rosa. O Pinotes
atravessou-se nas minhas pernas. Pensava, talvez, que brincávamos às
escondidas.
- Quieto Pinotes! Sentado!
Sentou-se, de orelhas
pendentes, sem compreender a situação.
Com mil cuidados, olhei
para a travessa onde morava a senhora Gertrudes. A luz do quarto estava acesa.
Será que a senhora Gertrudes não tinha sono? Pedi a Santa Teresinha para que o
gato não viesse naquela altura fazer chichi.
- Nada a bombordo, nada a estibordo... –
pensei – Está na hora!
Fiz então sinal aos
assaltantes para iniciarem a “tomada do quintal do senhor Viriato”. Subiram para as costas dos mais pequenos e
um...dois...três! Pernas alçadas sobre o muro e a aterragem do outro lado! Mas,
qual não é o meu espanto quando aos meus ouvidos surgem os mais estranhos ruídos!
Ouvia-se distintamente as vozes dos meus colegas a gritarem palavras que não
tinham razão de ser para a ocasião:
“Ai”...”Ui”... “Ajudem-me, tenho o
cabelo preso”... “Ai”, “Ai”... “Ai, tenho picos nas pernas”...
Olhei para o Lingrinhas
e para a Rosa, que estavam tão aterrados como eu! Que teria acontecido? Tentámos
ver o que se passava no quintal, mas foi em vão: o portão não tinha qualquer
abertura por onde pudéssemos espreitar. Existia apenas uma nesga entre a parede
e as dobradiças do portão, que era insuficiente para conseguirmos ver a
tragédia.
De repente, o quintal
iluminou-se ao mesmo tempo que a porta da cozinha se abria. E uma voz de trovão
fez-se anunciar:
- Quem está aí?
Temia pelo que podia
acontecer ao Fernando e aos outros. E, heroicamente, gritei:
- Senhor Viriato, não lhes faça mal! A
culpa foi minha!
O senhor Viriato abriu o
portão, que rangeu. Olhou para nós, de olhar ameaçador.
- Entrem! – disse, entre dentes.
A Rosa, agarrada ao meu
vestido, começou a soluçar, enquanto dizia:
- “Telesa”, eu “quelo” “il” “pala” a
minha mãe...O “senhol” “Viliato” vai “matal” a gente...
Naquela altura fiquei sem
resposta para lhe dar.
Entrámos devagar. Decerto
que aquele caminho nos levaria à forca ou, na melhor das hipóteses, à prisão.
Lembro-me de ter pensado onde ficaria a prisão mais próxima.
O que vimos deixou-nos
estupefactos. Os assaltantes tinham caído direitinhos em cima das roseiras do
senhor Viriato! O Fernando e a Ana tinham a cara toda arranhada. A Vera,
esforçava-se por soltar o cabelo loiro dos picos . A Rita soluçava, enquanto
olhava para um grande rasgão no seu vestido azul. O Eduardo tentava soltar o calção dos picos
de uma roseira cor de fogo e o Pinotes saltitava ao redor deles, dando muito ao
rabo. Continuava a julgar que brincávamos às escondidas.
O senhor Viriato ajudou-os
a levantarem-se e no fim disse:
- Ora vamos lá a saber, o que é que
queriam do quintal?
Olhámos uns para outros
sem atinarmos com uma resposta. Instintivamente, todos me fitaram à espera que
eu tivesse uma solução. Perdidos por dez, perdidos por mil e então disse,
corajosamente:
- A culpa é minha, senhor Viriato. Não
lhes faça mal. Eu é que tive a ideia de virmos roubar laranjas...Eu é que
mereço o castigo. Se alguém merecer a prisão, sou eu, só eu... e não eles...!
Considero-me culpada! (Tinha ouvido esta frase numa série da televisão e achei
que se ajustava perfeitamente).
O senhor Viriato coçou a
cabeça. Olhou para nós e mostrando pela primeira vez os dentes, disse
divertido:
- O quê? Tudo isto por causa das
laranjas? Se é esse o problema...
Agarrou num saco que estava pendurado numa das
laranjeiras e começou a enchê-lo de bonitas laranjas baía.
- Tomem. E façam bom proveito... Para
a outra vez, quando quiserem laranjas, basta pedirem...Eu não sou nenhum papão.
Sim, o senhor Viriato,
não é nenhum papão. Afinal o senhor Viriato é fixe!
Agradecemos ao senhor
Viriato e saímos. Ainda não estávamos em nós! Eram emoções a mais para uma
noite só!
Tínhamos dado alguns
passos, quando o senhor Viriato gritou, perdido de riso:
- E antes de saltarem ao muro,
experimentem primeiro o portão...! É que o portão estava aberto...
Fomos para casa
completamente envergonhados. Eu, como responsável, não fiz nenhum comentário.
- Sim, avó, já me vou deitar...
Está na hora de ir
para a cama...Oxalá a senhora Eulália melhore...
Eugénia Edviges
Um grande XI-
Um grande XI-
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