Na Rua do Pinheiro

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Histórias da Rua do Pinheiro - III Capítulo

 Aqui vai a publicação do III Capítulo das histórias da Rua do Pinheiro.
As ilustrações são....são....claro! do Zé Lima!
A história tradicional já a publiquei no blogue.Portanto, já a conhecem, mas é sempre bom reler.

                           E melhorou! Hoje, depois de falarmos sobre o teste de Ciências, que correu mal a todos, e nos preparávamos para ir jogar ao Lenço, eis que a senhora Eulália, surgiu à porta da rua. A filha seguia-a, segurando uma cadeira para se sentar. Como sempre, muito bem arranjada, com a sua saia preta, franzida, sem um vinco. No alto da cabeça o tradicional lenço, atado ao pescoço.
                           Corremos ao seu encontro, loucos de alegria.
- Ó vizinha, o seu neto está longe, mas rapazes pequenos não lhe
 falta... Gostam mesmo de si... – referiu a senhora Amélia, sentada à porta da sua casa. Dobrava roupa que tinha acabado de apanhar do estendal.
                           A senhora Eulália riu-se, mostrando a boca sem dentes.
- Vocês já jantaram? – perguntou – Já passa das nove...
              Está claro que já tínhamos jantado. Só vamos brincar para a rua depois da barriga cheia.
- “Quelemos” uma “histólia”  “senhola” Eulália... – pediu a Rosita dando saltinhos no chão.
- Sim, eu não me importo de lhes contar uma história, mas primeiro vou descansar um pouco, vendo-os brincar...
               E fomos brincar ao “Lenço”, como estava previsto.
               Eu vou explicar como é.
               Fazemos uma roda, dando as mãos uns aos outros. Um, fica de fora segurando um lenço na mão (a senhora Eulália empresta-nos sempre o dela). O que fica de fora, corre ao redor dos outros, gritando:                   

                            “Aqui vai o lenço, aqui fica o lenço,
                              Aqui vai o lenço, aqui fica o lenço...”

                Quando quiser, o que leva o lenço, deixa-o cair  no chão, atrás de um dos que estão na roda. Se depois de dar uma volta completa, o que tem o lenço atrás de si não o vir caído no chão, o dono do lenço empurra-o para o centro da roda para ficar de “castigo”. Se pelo contrário ele descobrir o lenço, agarra-o e continua o novo possuidor do lenço a correr ao redor, enquanto o colega vai para o lugar dele. Por isso mesmo, todos os que estão na roda, têm que estar sempre a olhar para trás, mas através das pernas, que se mantém abertas.
               É um jogo muito fixe! Rimo-nos a valer, quando algum é apanhado e vai para o centro de “castigo”. A senhora Eulália, quando vê que fazemos algo mal feito, explica-nos como devemos fazer... Aliás, ela é que nos ensinou todas as brincadeiras que sabemos!
               Hoje, ficaram de “castigo” o Eduardo, o Fernando e a Rita.
               Quem ficou mais tempo com o lenço foi o Lingrinhas. Como é magrinho, corre mais depressa e consegue apanhar o lenço, antes do que irá ser castigado. Está claro que o Fernando, que tem a mania do contra, fartou-se de gritar: “És um “granda” batoteiro! Assim não vale...”
- Não é “granda”é “grande” – respondi eu.
- Não é “granda”, não é “granda”... Falou a Dona Teresa Espertalhona.
                Estava na altura de acabar o jogo. Mas a senhora Eulália acudiu novamente:
- Então, o que é isso? Não briguem, senão não lhes conto a história...
- Cantem a “Triste Viuvinha” – gritou a senhora Gertrudes, que se aproximava devagar, à procura de alguma conversa que lhe desse novidades fresquinhas. A senhora Gertrudes é muito bisbilhoteira...!
                 Foi boa ideia. Continuámos a roda, cantando:


                           “Olha a triste viuvinha
                             Que anda na roda a chorar.
                             Anda a ver se encontra noivo,
                             Para com ela casar.
                             
                             Já lá levas dois cabaços,
                             Três ou quatro hás-de levar
                             É bem feito, é bem feito
                             Não achares com quem casar.”


                 A viuvinha durou enquanto não houve outra briga.  O Eduardo puxou o rabo ao Pinotes, para o obrigar a ir para o meio da roda. O rafeiro ganiu, refugiando-se junto às pernas da Vera. Está claro que a Vera não ficou calada. Agarrou-lhe num braço do Fernando com toda a força e vá de lhe dar palmadas nas costas. Quisemos acudir, mas ainda foi pior. Em pouco tempo rebolávamos todos no chão.
                 Quem ficou contente com o acontecimento foi o Pinotes. Atirou-se para cima de nós, lambendo-nos a cara.  Tudo aquilo para ele era uma nova brincadeira, que não podia desperdiçar.
                 As vizinhas acorreram para nos separar.
- Pronto...pronto...então, que maneiras são estas...
- Sentem-se aqui ao pé de mim – pediu a senhora Eulália – Está na hora da história.
                  Como por milagre, a briga acabou. Corremos para a senhora Eulália e sentámo-nos no chão ao seu redor. O Pinotes aninhou-se ao meu lado metendo o focinho sobre as minhas pernas. E a história começou:

“Era uma vez uma velha, que tinha três netas. Duas eram surdas que nem uma porta e a mais velha era tão feia, tão feia, que até metia medo ao susto.  A própria avó não a deixava sair à rua porque tinha medo que as pessoas se assustassem com ela.
A velha pensava que a neta já tinha idade para se casar, mas quem quereria casar com uma rapariga horrorosa como ela?
Pensou, pensou, e por fim teve uma ideia.
Todas as manhãs passava por aquela rua um príncipe montado no seu cavalo branco. Era um jovem muito bonito, e principalmente era filho do rei. Naquela manhã, a velha estava à janela à espera de ver o príncipe dobrar a esquina montado no seu cavalo. Mal o viu, correu a buscar um alguidar com água, deitou-lhe um frasco de perfume dentro e quando o príncipe passava mesmo frente à porta, deitou a água para o chão da rua, ao mesmo tempo que dizia:
“A minha neta é tão linda, que até a água onde se lava cheira bem...”
O príncipe ouviu aquilo e ficou com curiosidade de saber quem era aquela beldade. Já há muito tempo que procurava noiva e talvez  a neta daquela velhota fosse digna de ser uma princesa.
Bateu à porta. A velha apareceu e ele pediu-lhe para ver a rapariga, ao que ela respondeu:
“Ai, meu príncipe é impossível ver agora a minha neta...A sua pele é tão delicada e sensível, que até a luz do dia lhe faz mal...Só poderá vê-la à noite. “
O príncipe ficou encantado. A rapariga deveria ser de uma beleza extraordinária. Começava a ficar apaixonado.
Quando chegou a noite foi novamente a casa da velha.
“Ai, meu príncipe, a noite está tão fresca e húmida... que estragará a pele da minha querida neta...”
Mas o príncipe não aguentava esperar mais e pediu-lhe:
“Protege a sua pele com um manto. Eu vou levá-la para o palácio e casarei com ela.”

- O príncipe era mesmo parvo – querer casar  com uma mulher sem lhe conhecer a cara... – disse a Ana, com as mãos em concha sobre o queixo.
- Shiiiuu!!

“A velha  assim fez. Vestiu à neta o vestido mais bonito que ela tinha e cobriu-lhe a cabeça com um véu.
Quando chegaram ao palácio o príncipe mandou-a destapar o rosto. Assustou-se quando olhou para ela.  Nunca tinha visto rapariga tão feia como aquela! Ficou furioso por ter sido enganado. E disse-lhe, tapando os olhos com as mãos:
“Para castigo, irás passar a noite na varanda do palácio, mas completamente despida. Toda a gente irá conhecer a tua fealdade.”

- Despida senhora Eulália!? – perguntei eu admirada. Não sei porquê tive a sensação que aquele pormenor era da autoria da senhora Eulália.

“E assim foi. O príncipe meteu a menina à varanda do palácio, despida. A noite estava gelada. Seria difícil resistir ao frio. A menina encostou-se a um canto da varanda e começou a chorar.
 Já a noite ia avançada, quando começou a ouvir uma música lindíssima. Olhou para baixo, para a rua.   Viu uma fada com a sua varinha de condão rodeada por lindas bailarinas,  de cabelos loiros. Apesar de toda aquela música e bailado a fada parecia triste.  Seguia devagarinho, de olhos postos no chão.  Encostou-se a uma árvore e olhou para o palácio. Vendo a menina, feia e nua na varanda não se pode conter e soltou uma grande gargalhada. As bailarinas pararam a dança e vendo a causa da alegria da fada, aproximaram-se da varanda e perguntaram à rapariga o que é que lhe tinha acontecido para ela estar naquela situação.
Depois de contar a sua desgraça, a fada aproximou a varinha de condão do pé da menina, que era a parte do corpo que estava mais próxima, e disse-lhe:
“Como recompensa de me teres feito rir ao fim de tantos anos, vou fadar-te: a partir deste momento serás a rapariga mais linda do reino e o príncipe casará contigo. Serão felizes para sempre!”
No dia seguinte,  o príncipe foi à varanda. Estava convencido que a menina tinha morrido. Mas qual não é o seu espanto ao deparar não com a feia horrível que ali tinha deixado na noite anterior, mas sim com uma rapariga de beleza sem par, linda como as flores do jardim. O seu coração bateu delirante. Aquela seria a princesa da sua vida. Não era preciso esperar mais. O casamento iria realizar-se imediatamente!
Passou-se algum tempo. Como tinha saudades da avó e das irmãs foi visitá-las. Quando as irmãs a viram, perguntaram admiradas:
“Ai, mana, que te fizeram!?”
E ela respondeu:
“Fadaram-me.”
As irmãs, como eram surdas, disseram admiradas:
“O quê? Esfolaram-te?”
“Não. Fadaram-me.”
“Ah, esfolaram-te...!
E foram a correr ao barbeiro mais próximo. Queriam que ele as esfolasse também.
E assim acabou a história”

              Gostámos.  Ficámos quietos, pensativos, a imaginarmos a história que tínhamos acabado de ouvir.
- Só não compreendo como é que a menina, depois de tudo o que o príncipe lhe fez, ainda casou com ele... – murmurou a Vera.
- Porque se apaixonou por ele. – respondeu o Lingrinhas.
- Apaixonar-se por um homem que a tratou tão mal!? – respondi eu, sem perceber aquele amor.
 - Não. Acho que casou com ele porque se tratava de um príncipe – alvitrou a Rita, com os cabelos pretos em pala sobre os olhos amendoados.
- O que importa é que foram muito felizes – rematou a senhora Eulália.
- Eu acho que a menina casou com o “plincipe” porque ele tinha um cavalo...
               A senhora Eulália soltou uma gargalhada:
 - Deves ter razão Rosinha.  Agora é que acertaste.... Vá, são horas de irem para a cama.
               Demos todos um beijinho na face ressequida da senhora Eulália. Desconfiei  ver nos seus olhos umas lágrimazitas teimosas.
                E partimos a cantar:

                         
                               “Rosa branca ao peito
                                A todos está bem
                                À senhora Eulália olaré
                                Melhor que a ninguém.
                                
                                 Melhor que a ninguém
                                 Por dentro ou por fora
                                 Quem sabe lá olaré
                                 Quem ela namora.

                                  Quem ela namora
                                  Quem ela namorou
                                  Ao chegar à roda olaré
                                  A mão lhe apertou.

                                  A mão lhe apertou,
                                  A mão lhe apertaria
                                  Ao chegar à roda olaré
                                  O que mais seria.

                                   O que mais seria
                                   O que mais será
                                   Esta canção olaré
                                   Vai acabar já.”

       
             O que me preocupa são as irmãs da menina. Será que o barbeiro as esfolou? Essa ideia faz-me rir. Estou a imaginar as meninas sentadas no banco do barbeiro  e ele de navalha em punho a esfolar-lhes o corpo, dizendo: “Isto não pode ser, vocês podem ter de ir para o hospital!...” ao que elas respondem: “Não faz mal senhor barbeiro. Isso dói mas queremos ser bonitas como a nossa irmã...”
- Teresa, são horas de descansares...Apaga a luz.
               É a minha avó. Pronto, vou descansar, mesmo não estando cansada.

                                                                                             Eugénia Edviges

Um grande XI-    

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