Na Rua do Pinheiro

quarta-feira, 28 de março de 2012

O Velho

Mais uma história do Livro Marta Aprende a Voar. As ilustrações só podem ser do Zé Lima!

 
O senhor Anselmo era solteirão. Usava calça e casaco de ganga com botões de massa e chapéu de abas largas, preto, que enterrava até às orelhas. Caminhava sempre de olhos no chão. De vez em quando erguia um pouco o rosto para olhar desconfiado quem se cruzasse com ele. Alto, mas um pouco curvado, aparentava ter perto de setenta anos.
            Trabalhava no campo. Fazia pequenos serviços para este ou aquele lavrador que o contratasse. Nunca cumprimentava ninguém. Limitava-se a acenar com a cabeça quando algum conhecido se atrevia a dirigir-lhe a palavra. Não tinha amigos nem sequer se via a conversar com os vizinhos quando as sombras da noite escureciam as ombreiras das portas.
Vivia com a irmã, também solteirona, um pouco mais nova que ele e que passava os dias à porta, à procura de conversa. Deveria ter sido bonita. O rosto, moreno, possuía uns olhos cor de esmeralda e uma boca bem feita. Para remate do cabelo branco, sempre despenteado, usava um carrapito no alto da cabeça.
As crianças tinham medo do senhor Anselmo. Fugiam, cada um para seu lado, a esconderem-se atrás dos muros dos quintais, quando ele passava com o chapéu preto a tapar-lhe o rosto e a enxada, ameaçadora, sobre o ombro direito.
Mais tarde voltava a passar, cerca das oito horas. Tinham curiosidade em saber onde é que ele ia sempre àquela hora.
E, pela segunda vez, as crianças voltavam a fugir. Já não trazia a enxada sobre o ombro mas, mesmo assim, continuava assustador.
A Aninhas, de dez anos ladinos, não tinha medo. Apesar do chamamento dos colegas para fugir, deixava-se ficar entregue à brincadeira até o senhor Anselmo dobrar a esquina da rua.
A Aninhas sentia pena dele. Achava-o uma pessoa muito só, triste, sem ninguém para conversar. Além do mais nunca lhe fizera mal. Apenas abrandava o passo quando passava por ela, olhando-a de lado. Talvez se admirasse daquela menina não fugir dele como todas as outras crianças.


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Naquela tarde a história repetiu-se.
O senhor Anselmo passou na rua à mesma hora, de mãos enterradas nos bolsos das calças e com o horrível chapéu preto.
- Fujam! Vem aí o Velho! – gritaram os pequenos abandonando a brincadeira.
E em pouco tempo, deixou de se ouvir os risos alegres daquelas crianças.
A Aninhas continuou a jogar às “cinco pedrinhas” no passeio, junto à porta de casa. Apenas se ouvia o ruído musical das botas do senhor Anselmo. Fazia eco o barulho das pedrinhas que escorriam pelos dedos da criança, caindo no chão.
Os passos aproximaram-se...
Repentinamente, deixaram de se ouvir! A Aninhas sentiu que o Velho estava parado atrás de si! O seu coraçãozinho parecia querer saltar-lhe do peito. O senhor Anselmo iria fazer-lhe mal? Pensou em gritar pela mãe, atarefada na cozinha, mas faltaram-lhe as forças para isso.
- Levanto-me devagarinho e dou uma corrida... – pensou a pequena amedrontada. – Ele decerto não me conseguirá apanhar...
            Olhou para as pedrinhas sem as ver. A mão, aberta da última jogada, tremia. Como se arrependia de não ter fugido com os amigos. O fim estava próximo!
            Na sua imaginação conseguia ver um rosto sem olhos junto ao seu pescoço. E as mãos do senhor Anselmo transformarem-se em garras de monstro, iguais aos monstros que ela conhecia dos livros de histórias de terror.
            De súbito veio-lhe à ideia todas as maldades que tinha praticado. Como lhe custava ter chamado “caixa-de-óculos” à Dora, sua amiga desde sempre. Oh, como pôde negar ao Francisco o empréstimo da sua caderneta de animais selvagens! E jura por tudo que não pretendera magoar a Inês quando, no outro dia, numa corrida de bicicleta, lhe dera um encontrão fazendo-a cair! Queria apenas chegar primeiro à meta...!
            E durante alguns segundos passaram-lhe pela ideia, como um relâmpago, todas as maldades, das quais se arrependia.
            Corajosamente, enfrentou o “demónio”!... Que a olhava por baixo das abas do chapéu! Este, parecia mais preto do que o habitual. Mas...o demónio tinha os olhos verdes! E sorriu! Sorriu para ela! Um sorriso tímido, mas um sorriso!
            Encheu-se de coragem e balbuciou:
- Boa tarde...senhor Anselmo...
- Olá... – e continuava a sorrir. Mais à vontade, acrescentou:
- Quando eu era pequeno também jogava às “cinco pedrinhas”... Essas que tens não são muito boas. Se quiseres...eu trago-te umas redondinhas, lisas, da margem do rio...
            Afinal o senhor Anselmo não metia medo. Quem estava à sua frente era um homem muito só, um homem que naquele momento se sentia feliz por alguém sorrir para ele e escutar as suas palavras.
- Obrigada, senhor Anselmo. Depois jogamos os dois com as pedrinhas novas.
- Posso jogar agora contigo?
- Claro que podes. Senta-te no chão...
            Brilharam os olhos do velhote! Sentiu-se pequenino como a Aninhas.
            E jogaram, de joelhos no chão. Riam, quando o senhor Anselmo não conseguia fazer saltar as pedrinhas nas costas da mão.
            E assim estiveram durante algum tempo até que, cansados, se encostaram à porta de casa.
            Por momentos fez-se silêncio.

            A voz da Aninhas corta-o, dizendo:
- Senhor Anselmo, onde vai sempre a esta hora, quando passa por aqui?
            O senhor Anselmo deitou o olhar sobre o relógio de pulso e depois de se certificar das horas, respondeu com voz sonhadora:
- Ao cinema.
- Ao cinema, senhor Anselmo!? Ver filmes? Já viu muitos? Oh, que maravilha!
            A Aninhas nunca tinha assistido a um filme. Do cinema, apenas conhece o edifício que fica no Largo a seguir à sua rua. É um prédio de dois andares, rectangular, pintado de creme e rosa, que tinha sido inaugurado há pouco tempo. O primeiro andar tem janelas grandes, abobadas, de caixilhos brancos rodeados de pedra granítica. Junto à última janela, do lado esquerdo, há um placar gigante, horizontal, que diz: “Cine-Teatro”. De noite acende-se e a sua luz vermelha ofusca os olhos da Aninhas que, de cabeça inclinada, se perde na magia do “Cine-Teatro” a brilhar. Ao lado do placar, na fachada do prédio, desenham-se também em pedra granítica, duas caras entrelaçadas, uma que ri outra que chora. Representam a comédia e o drama como veio a saber pelo filho da senhora Alzira que estuda em Lisboa.
            Nas tardes de domingo a Aninhas gosta de se sentar num dos bancos do Jardim frente ao cinema. Dali pode apreciar os preparativos do senhor Manuel que tem as funções de bilheteiro e de porteiro. Começa por abrir os portões em ferro, gradeados, para um e outro lado. Depois, vai para dentro e surge por detrás da pequena bilheteira que dá para o átrio. À sua frente, quase ao nível do rosto, amontoam-se os bilhetes coloridos: amarelos para a 2ª plateia, verdes para a 1ª e brancos para o balcão.
            E as pessoas vão chegando em grupos, na esperança de, por umas horas, viverem os sonhos, tornados reais, através do écran gigante. Gente de todas as idades que faz fila para comprar os bilhetes. Os mais impacientes empurram-se junto da porta à espera que o senhor Manuel não tarde a abri-la. Todos querem ser os primeiros a entrar.
Nas noites de Verão os filmes são exibidos num grande espaço descoberto que fica nas traseiras do edifício. A “Esplanada”, como todos lhe chamam.
            São colocados bancos corridos e há um pequeno bar onde se pode comprar pevides ou rebuçados.
            Isto tinha-lhe dito a Joana que fora uma vez com os padrinhos à “Esplanada” ver um filme para rir.
            No caminho para a escola a Aninhas faz sempre uma paragem à entrada do cinema. Agarra-se ao portão e mete a cabeçinha de cabelos loiros entre o gradeamento para ver as fotografias expostas em todo o átrio. Adora ler os títulos dos filmes e o nome dos actores. Na sua imaginação consegue idealizar deslumbrantes histórias através das fotografias que tem à sua frente.

            Com a cabeça encostada à parede, a Aninhas com o olhar perdido no telhado em frente, pensou como seria bonito assistir a um filme na “Esplanada”: os bancos repletos de gente a trincar pevides ou a chupar rebuçados! A luz a bater no écran fazendo-o brilhar! E a música estonteante dando início ao espectáculo! E, lá no alto, a brilharem, as estrelas do céu!
            O senhor Anselmo, sentado no chão, junto à Aninhas, nada dizia. Compreendia o silêncio da pequena... No dia seguinte trazer-lhe-ía as mais bonitas pedrinhas do rio. Mas...seria suficiente? Será que as pedrinhas substituiriam os filmes que a Aninhas nunca vira?...Tomou uma resolução!
- Hei-de levar-te ao cinema!
            A Aninhas respondeu, com o olhar brilhante:
- O quê!?...Vai levar-me ao cinema!?
            O senhor Anselmo vislumbrou no rosto da criança uma enorme gratidão e respondeu feliz e com firmeza:
- Prometo!
            Entretanto, todas as outras crianças, se aproximaram com passos incertos e olhos abertos de espanto.
- A Aninhas está a falar com o Velho! – disse o Francisco, admirado.
- Temos de a salvar! – acrescentou a Inês, ao imaginar a Aninhas raptada por aquele monstro.
- Mas...reparem...estão a rir!
- Não vamos – choramingou a Dora, que era a mais medrosa do grupo.
- Não sejas parva! – respondeu o Francisco, puxando-lhe o rabo de cavalo, encaracolado – Se não comeu a Aninhas também não nos come a nós.
            E cheio de valentia agarrou uma pedra do chão para o que desse e viesse.
            Agarraram-se uns aos outros para protecção. Mas, quanto mais se aproximavam mais lhes parecia que o Velho não oferecia perigo algum. Aquele rosto, afinal, nada tinha de temível.
            Foi então que a Aninhas reparou neles:
- Venham! É o senhor Anselmo! Não nos faz mal! Vai trazer-nos pedrinhas do rio...
            Mais à vontade, alargaram o passo.
Sentaram – se ao redor do senhor Anselmo. Olharam-no, de olhos muito abertos.

            O Francisco, às escondidas, atirou a pedra para o outro lado da rua. Quase que acertara no Tareco, o gato da senhora Adelaide, que ao sentir-se ameaçado, arreganhou a dentuça e arqueou o dorso, em sinal de ataque.
- Sabem, o senhor Anselmo costuma ir ao cinema...!
            Mais admiração. O senhor Anselmo vai ao cinema!? Ver filmes!?
            Sentiram-se os únicos conhecedores de um grande segredo.
- E qualquer dia vou com ele.
            Agora sim! Era um caso nunca visto!
            E todos falaram ao mesmo tempo, excitadíssimos:
- Leve-nos também, senhor Anselmo...
- Já viu muitos filmes?
- Conte-nos como é...!
- Conte-nos um filme! Conte, senhor Anselmo...
            E então, pela voz rouca do senhor Anselmo, passaram todas as fitas que ele já tinha visto: histórias de reis poderosos, de terras longínquas que ninguém conhece, histórias de traição e guerra, histórias para rir outras para chorar...
            O sol escondia-se por detrás dos telhados. As portadas fechavam-se de mansinho. A noite, silenciosa, aproximava-se para ouvir as histórias encantadas que jorravam dos lábios do senhor Anselmo.
            E as crianças sonhavam, ao ouvi-lo!
                                                                                    Eugénia Edviges
 Um grande xi-

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