Uma história incluída no meu livrinho "Marta Aprende a Voar". As lindas ilustrações são do Zé Lima e a editora é Nova Vega. Espero que gostem.
O Avô Simão andava furioso. Resmungava com o bigode a tremer. Já não
sabia que contas havia de dar à vida. A causa da sua aflição, vou eu contar-vos
tim tim por tim tim. Ora prestem atenção: o avô Simão tinha uma horta. Uma
horta que ele tratava com carinho. Tinha couves, alfaces, girassóis e muito
mais. Até tinha uma figueira que dava figos de comer e chorar por mais.
Plantara moranguinhos a rodear os canteiros. Mas os pássaros matreiros, com os
seus chilreios estridentes iam lá encher o papo: verdelhões, de peito amarelo,
pardais acastanhados, pintassilgos barulhentos…
O Avô Simão não sabia o que fazer. Quando via a
passarada corria a casa, abria o armário das panelas e trazia as tampas delas. E
batia, batia sem parar. Os malandros fugiam, mas escondiam-se até a zanga do
Avô Simão passar.
Depois voltavam para a refeição. Primeiro,
devagarinho, depois já mais à vontade.
Dizia o pardal para o melro:
-- Chega-te para lá
comilão! Este girassol é meu!
E começava o escarcéu. Formava-se grande alarido.
Os verdelhões não queriam certo morango por já estar mordido; os pardais, em
coro, cantam da figueira:
“Olarilolé,
tenho o papo cheio,
Só falta beber
água da ribeira!”
Os pintarroxos, qual deles o mais gorducho, achavam
que a horta do Avô Simão era um restaurante de luxo. E vá de depenicar que o
dia está no ocaso!
Todos os dias acontecia o mesmo. O Avô Simão vivia
arreliado. Aquela passarada não lhe dá sossego.
A Rita e o Tiago são os netos do Avô Simão.
Sentados no peal da porta olhavam entristecidos para o Avô sem contudo deixarem
de apreciar a alegria das aves a encherem os papinhos.!
--Temos de arranjar
uma solução... – dissera o Tiago pensativo –. Isto está a ser demais.
-- Vê se tens uma das tuas ideias. – Pediu a
Rita.
-- Já sei o que vamos fazer! – Gritou o Tiago,
levantando-se num salto. – Vamos fazer um espantalho!
-- Um espantalho!? --
Exclamou a Rita – Isso é muito trabalhoso?!
---Só precisamos de
roupa velha e de palha.
--- No sótão há uma
arca de tralha... Vamos lá verificar.
E se bem o pensaram, melhor o fizeram.
Encontraram no sótão a arca coberta de pó. Dentro
dela havia umas calças de ganga, já velhas e uma blusa de chita que usara a
avó. Havia também um chapéu de abas largas, cinzento, que usara o avô quando
era novo e até um laçarote preto, de cetim, para o pescoço.
Foram buscar palha ao curral e uma vassoura de
piassaba. E ainda arrancaram do marmeleiro, um dos seus troncos para espetar o
espantalho.
-- Vamos ao trabalho!
– Disse o Tiago entusiasmado.
E a pouco e pouco o boneco foi ganhando vida.
Primeiro, com a palha, fizeram o corpo. Num determinado sítio, apertaram com um
cordel para fazerem o pescoço. Por trás prenderam uma ripa e rodearam-na também
com palha para o espantalho ter braços. Já se adivinhava o perfil do
espantalho.
A blusa da
avó ficava-lhe a matar. Depois de cortarem a palha ao meio para fazerem as duas
pernas, vestiram-lhe as calças de ganga da cor do mar. Desfiaram as calças na
parte de baixo, pintaram um malmequer no chapéu cinzento. As calças e a blusa
tinham uns buracos, mas resolveram-se com uns remendos de pano. Colaram uns
botões enormes, que encontraram na caixa da costura. Só faltava o laçarote.
-- Isto foi uma
aventura! – Disse a Rita muito divertida.
-- Agora, pintamos a
boca e o nariz e está a obra acabada!
No fim encostaram o espantalho à parede, perto da
janela. Para eles não havia obra tão bonita como aquela.
-- Não se esqueceram
de nada?
De onde vinha aquela voz? Seria o vento no telhado?
Esquisito.
--- Reparem, não
tenho olhos...
Era o espantalho! Um espantalho a falar!? Podia lá
ser! Que coisa mais estranha e esquisita!
--- Tu falas? – Perguntou
a Rita com os olhos esbugalhados de espanto.
--- Falo, porque me
desenharam a boca. – Confirmou o espantalho - Mas como posso afugentar os
pardais, se não os posso ver?
Era verdade. Como fora possível esquecerem-se
disso?
Mas depressa se resolveu o problema. A Rita
pintou uns olhos verdes, cor da esperança.
Levaram-no finalmente para a horta. Espetaram-no na
terra macia das nabiças. A um dos braços ataram a vassoura de piassaba. Agora
sim! Estava a obra acabada! O Espantalho estava mesmo bem feito!
-- E se lhe déssemos
um nome? – Lembrou a Rita.
-- Que tal Catita? – Respondeu
o Tiago.
-- Boa ideia! É mesmo
nome de espantalho.
O Avô Simão gostou do Baltazar. Elogiou tanto o
trabalho dos netos, que estes ficaram orgulhosos.
-- Mas os malandros
são matreiros... – disse o Avô Simão coçando a cabeça. – Vamos ver o que
acontece...
Ora, o que havia de acontecer? Está-se mesmo a ver!
Os pássaros comilões não obedeciam ao Baltazar. Ele bem ralhava, mas em vão.
-- Ó seus cabeças de
vento! – Gritava para os pardais – Haja mais consideração!
-- Ah! Ah! Ah! – Riam os pintarroxos
saltitando sobre os girassóis – Olha o boneco a querer mandar!
De planta em planta, de galho em galho enervavam o
espantalho, devorando o que podiam apanhar.
-- Eu sou a
autoridade! – Exclamava o Baltazar – Devem-me respeitar! Vá, para trás!
-- Corre atrás de nós
se fores capaz! – Respondeu um pintassilgo atrevido, enquanto devorava um figo
suculento.
-- Para que é essa
vassoura na mão? – Perguntaram com ar trocista, os verdelhões – È para varreres
a casa do Avô Simão?
-- Ah! Ah! AH! – Voltaram a rir,
chilreando exuberantemente – Não temos medo das panelas, quanto mais de
vassouras velhas!
O Baltazar desesperava. Era demais tanto desaforo!
Já não havia respeito pela função de um espantalho! Que falta de educação!
-- Vamos, toca a
comer! – Gritavam uns para os outros – A noite já vem perto…
-- É só mais esta
alface – respondiam os pardais – Uhm! Tão fresquinha e tão verdinha!
No fim levantaram voo, fazendo curvas no ar.
Disse o melro ao Baltazar, voando ao seu chapéu:
-- Até amanhã,
paspalho! Dá cumprimentos ao Avô Simão!
Nos dias que se seguiram não houve nenhuma mudança.
O Avô Simão, a Rita e o Tiago não sabiam o que fazer. Olhavam entristecidos para
a horta e para o espantalho… Tirá-lo dali? Nem pensar! Tão engraçado! Tão
bonito!
-- O Avô está preocupado.
Não encontra solução. – Disse a Rita ao irmão.
-- Vamos dormir. Quem
sabe se amanhã teremos uma grande ideia!
-- Duvido... –
murmurou a Rita – a coisa está a ficar complicada…
Felizmente a ideia não se fez esperar. Quando a
Rita acordou no dia seguinte, ela já fermentava na sua cabeça e era brilhante. De
tal modo que logo se convenceu de que não podia correr mal. Chamou o irmão e
explicou:
-- Cozemos pequenos
saquinhos de tecido ao Baltazar. Dentro deles metemos o que os passarinhos gostam...
Verás que resulta!
-- Assim, com a
comida ali a jeito, já não depenicam a horta nem os figos. Tens razão! Vamos
com a ideia para a frente!
Com os retalhos de tecido a Rita fez os saquinhos
enquanto o Tiago foi buscar alpista e sementes de melão à arrecadação. Reunindo
uns figos que tinham caído da figueira foi cortando-os enquanto pensava:
Lembrando-se do frigorífico correu na sua direcção
e tirou de dentro dele duas folhas das mais verdinhas que cortou aos bocados.
Vendo uns morangos tirou-lhes as partes queimadas pelo sol, que não se podiam
aproveitar, e transformou-as também em pequenos pedaços. Da despensa retirou um
frasco com sementes de girassol, que tinham sobrado do ano passado.
Depois juntou-se à irmã e ambos encheram os saquinhos
com todas aquelas iguarias. No fim, cozeram os saquinhos ao Baltazar e sentaram-se
a observar aguardando o que iria acontecer. Esperaram...Esperaram… Até
principiarem a ouvir os alegres trinados dos passarinhos.
Estes atacaram, como de costume, a horta do avô
Simão.
-- Ó seus palermas! --
Disse o Baltazar – É preciso ter muita pachorra e não ter caco nenhum na tola
para andarem assim, debruçados, sobre a horta. É tão simples jantar sem ter de
andar a saltitar de ramo em ramo e de planta em planta. Isso só os fatiga!
Os pintarroxos sustiveram a respiração; o melro, curioso,
meteu a cabeçinha preta de lado; os pardais, em coro, soltaram um Ah! Abafado;
os verdelhões e os pintassilgos ergueram ao mesmo tempo o olhar.
Que quereria o espantalho dizer com aquela
conversa?
-- Decerto perdeu a
cabeça... sussurrou um verdelhão.
-- Para mais, tem uma
cabeça de palha... – volveu outro.
Aproximaram-se com cuidado. Pretenderia o Baltazar
assustá-los com alguma panela?
-- Que estás para aí
a dizer espertalhão?
-- Será que nos
queres enganar?
-- Olha que não somos
para brincadeiras.
-- E é bom teres
outros modos…
--Qual quê! – Respondeu
o Baltazar – Vocês não estão a ver nada? Olhem bem para mim...
Aproximaram-se ainda mais. Bem, pensaram, isto tem
de ter um fim. Voaram ao seu redor à procura de sinais para a solução daquela
conversa parva.
Foi então que repararam. Penduradas no Baltazar
estavam uns invólucros esquisitos, cheiinhos de coisas boas: um tinha alface
cortadinha, outro tinha sementes de girassol, outro tinha figuinhos. Até havia
um a transbordar de alpista! Era um regalo para o olhar!
-- Ó Baltazar, tens
aqui uma boa refeição. – Disse o melro, levantando a asa.
-- Sirvam-se. É por
conta da casa.
Não foi necessário o Baltazar oferecer segunda vez.
Em pouco tempo, as suas calças de ganga e a blusa que fora da avó ficaram
cobertas das cores dos passarinhos. Até no chapéu cinzento havia saquinhos!
O Baltazar ria-se. Sentia cócegas no seu corpo de
palha.
-- Calha mesmo bem a
mesa posta a valer. – Repetiam as aves em coro.
-- E amanhã? Podemos
contar também com estas iguarias?
-- Haverá todos os
dias! – Explicou o Baltazar para os sossegar – O Tiago e a Rita serão sempre os
cozinheiros.
-- Vá de rir, vá de encher
o papo, que amanhã cá estaremos para ver!
Os pássaros chilreavam alegremente e o Baltazar
tinha com quem conversar.
-- Como tenho o trabalho
feito até me apetece fazer versos. Oiçam só o que acabei de inventar:
“Neste mundo de trabalho
E de tão estranhos caminhos
Nunca vi um espantalho
Dar de comer aos
passarinhos!”
-- Ah! Ah! Ah! Também nunca
vimos um espantalho poeta. – Comentou a passarada.
Sentados à porta de casa, os garotos sorriem
felizes. O Avô Simão, em sinal de admiração, coçava a cabeça. Vá lá a gente
entender a natureza!
E a horta do Avô Simão tornou-se cada dia mais
bonita. Até os vizinhos dizem que é a rainha das hortas lá do sítio!
Um grande xi-
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