Na Rua do Pinheiro

quarta-feira, 7 de março de 2012

Uma história incluída no meu livrinho "Marta Aprende a Voar". As lindas ilustrações são do Zé Lima e a editora é Nova Vega. Espero que gostem.

O Avô Simão andava furioso. Resmungava com o bigode a tremer. Já não sabia que contas havia de dar à vida. A causa da sua aflição, vou eu contar-vos tim tim por tim tim. Ora prestem atenção: o avô Simão tinha uma horta. Uma horta que ele tratava com carinho. Tinha couves, alfaces, girassóis e muito mais. Até tinha uma figueira que dava figos de comer e chorar por mais. Plantara moranguinhos a rodear os canteiros. Mas os pássaros matreiros, com os seus chilreios estridentes iam lá encher o papo: verdelhões, de peito amarelo, pardais acastanhados, pintassilgos barulhentos…
O Avô Simão não sabia o que fazer. Quando via a passarada corria a casa, abria o armário das panelas e trazia as tampas delas. E batia, batia sem parar. Os malandros fugiam, mas escondiam-se até a zanga do Avô Simão passar.
Depois voltavam para a refeição. Primeiro, devagarinho, depois já mais à vontade.
Dizia o pardal para o melro:
-- Chega-te para lá comilão! Este girassol é meu!
E começava o escarcéu. Formava-se grande alarido. Os verdelhões não queriam certo morango por já estar mordido; os pardais, em coro, cantam da figueira:
“Olarilolé, tenho o papo cheio,
Só falta beber água da ribeira!”
Os pintarroxos, qual deles o mais gorducho, achavam que a horta do Avô Simão era um restaurante de luxo. E vá de depenicar que o dia está no ocaso!
Todos os dias acontecia o mesmo. O Avô Simão vivia arreliado. Aquela passarada não lhe dá sossego.
A Rita e o Tiago são os netos do Avô Simão. Sentados no peal da porta olhavam entristecidos para o Avô sem contudo deixarem de apreciar a alegria das aves a encherem os papinhos.!
--Temos de arranjar uma solução... – dissera o Tiago pensativo –. Isto está a ser demais.
 -- Vê se tens uma das tuas ideias. – Pediu a Rita.
 -- Já sei o que vamos fazer! – Gritou o Tiago, levantando-se num salto. – Vamos fazer um espantalho!
-- Um espantalho!? -- Exclamou a Rita – Isso é muito trabalhoso?!
---Só precisamos de roupa velha e de palha.
--- No sótão há uma arca de tralha... Vamos lá verificar.
E se bem o pensaram, melhor o fizeram.
Encontraram no sótão a arca coberta de pó. Dentro dela havia umas calças de ganga, já velhas e uma blusa de chita que usara a avó. Havia também um chapéu de abas largas, cinzento, que usara o avô quando era novo e até um laçarote preto, de cetim, para o pescoço.
Foram buscar palha ao curral e uma vassoura de piassaba. E ainda arrancaram do marmeleiro, um dos seus troncos para espetar o espantalho.
-- Vamos ao trabalho! – Disse o Tiago entusiasmado.
E a pouco e pouco o boneco foi ganhando vida. Primeiro, com a palha, fizeram o corpo. Num determinado sítio, apertaram com um cordel para fazerem o pescoço. Por trás prenderam uma ripa e rodearam-na também com palha para o espantalho ter braços. Já se adivinhava o perfil do espantalho.
 A blusa da avó ficava-lhe a matar. Depois de cortarem a palha ao meio para fazerem as duas pernas, vestiram-lhe as calças de ganga da cor do mar. Desfiaram as calças na parte de baixo, pintaram um malmequer no chapéu cinzento. As calças e a blusa tinham uns buracos, mas resolveram-se com uns remendos de pano. Colaram uns botões enormes, que encontraram na caixa da costura. Só faltava o laçarote.
-- Isto foi uma aventura! – Disse a Rita muito divertida.
-- Agora, pintamos a boca e o nariz e está a obra acabada!
No fim encostaram o espantalho à parede, perto da janela. Para eles não havia obra tão bonita como aquela.
-- Não se esqueceram de nada?
De onde vinha aquela voz? Seria o vento no telhado? Esquisito.
--- Reparem, não tenho olhos...
Era o espantalho! Um espantalho a falar!? Podia lá ser! Que coisa mais estranha e esquisita!
--- Tu falas? – Perguntou a Rita com os olhos esbugalhados de espanto.
--- Falo, porque me desenharam a boca. – Confirmou o espantalho - Mas como posso afugentar os pardais, se não os posso ver?
Era verdade. Como fora possível esquecerem-se disso?
 Mas depressa se resolveu o problema. A Rita pintou uns olhos verdes, cor da esperança.
Levaram-no finalmente para a horta. Espetaram-no na terra macia das nabiças. A um dos braços ataram a vassoura de piassaba. Agora sim! Estava a obra acabada! O Espantalho estava mesmo bem feito!
-- E se lhe déssemos um nome? – Lembrou a Rita.
-- Que tal Catita? – Respondeu o Tiago.
-- Não é nome de espantalho! Deixa-me pensar…Já sei! Baltazar!
-- Boa ideia! É mesmo nome de espantalho.
O Avô Simão gostou do Baltazar. Elogiou tanto o trabalho dos netos, que estes ficaram orgulhosos.
-- Mas os malandros são matreiros... – disse o Avô Simão coçando a cabeça. – Vamos ver o que acontece...
Ora, o que havia de acontecer? Está-se mesmo a ver! Os pássaros comilões não obedeciam ao Baltazar. Ele bem ralhava, mas em vão.
-- Ó seus cabeças de vento! – Gritava para os pardais – Haja mais consideração!
-- Ah! Ah! Ah! – Riam os pintarroxos saltitando sobre os girassóis – Olha o boneco a querer mandar!
De planta em planta, de galho em galho enervavam o espantalho, devorando o que podiam apanhar.
-- Eu sou a autoridade! – Exclamava o Baltazar – Devem-me respeitar! Vá, para trás!
-- Corre atrás de nós se fores capaz! – Respondeu um pintassilgo atrevido, enquanto devorava um figo suculento.
-- Para que é essa vassoura na mão? – Perguntaram com ar trocista, os verdelhões – È para varreres a casa do Avô Simão?
-- Ah! Ah! AH! – Voltaram a rir, chilreando exuberantemente – Não temos medo das panelas, quanto mais de vassouras velhas!
O Baltazar desesperava. Era demais tanto desaforo! Já não havia respeito pela função de um espantalho! Que falta de educação!
-- Vamos, toca a comer! – Gritavam uns para os outros – A noite já vem perto…
-- É só mais esta alface – respondiam os pardais – Uhm! Tão fresquinha e tão verdinha!
No fim levantaram voo, fazendo curvas no ar.
Disse o melro ao Baltazar, voando ao seu chapéu:
-- Até amanhã, paspalho! Dá cumprimentos ao Avô Simão!
Nos dias que se seguiram não houve nenhuma mudança. O Avô Simão, a Rita e o Tiago não sabiam o que fazer. Olhavam entristecidos para a horta e para o espantalho… Tirá-lo dali? Nem pensar! Tão engraçado! Tão bonito!
-- O Avô está preocupado. Não encontra solução. – Disse a Rita ao irmão.
-- Vamos dormir. Quem sabe se amanhã teremos uma grande ideia!
-- Duvido... – murmurou a Rita – a coisa está a ficar complicada…
Felizmente a ideia não se fez esperar. Quando a Rita acordou no dia seguinte, ela já fermentava na sua cabeça e era brilhante. De tal modo que logo se convenceu de que não podia correr mal. Chamou o irmão e explicou:
-- Cozemos pequenos saquinhos de tecido ao Baltazar. Dentro deles metemos o que os passarinhos gostam... Verás que resulta!
-- Assim, com a comida ali a jeito, já não depenicam a horta nem os figos. Tens razão! Vamos com a ideia para a frente!
Com os retalhos de tecido a Rita fez os saquinhos enquanto o Tiago foi buscar alpista e sementes de melão à arrecadação. Reunindo uns figos que tinham caído da figueira foi cortando-os enquanto pensava:
-- E alface. Eles também gostam.
Lembrando-se do frigorífico correu na sua direcção e tirou de dentro dele duas folhas das mais verdinhas que cortou aos bocados. Vendo uns morangos tirou-lhes as partes queimadas pelo sol, que não se podiam aproveitar, e transformou-as também em pequenos pedaços. Da despensa retirou um frasco com sementes de girassol, que tinham sobrado do ano passado.
Depois juntou-se à irmã e ambos encheram os saquinhos com todas aquelas iguarias. No fim, cozeram os saquinhos ao Baltazar e sentaram-se a observar aguardando o que iria acontecer. Esperaram...Esperaram… Até principiarem a ouvir os alegres trinados dos passarinhos.
Estes atacaram, como de costume, a horta do avô Simão.
-- Ó seus palermas! -- Disse o Baltazar – É preciso ter muita pachorra e não ter caco nenhum na tola para andarem assim, debruçados, sobre a horta. É tão simples jantar sem ter de andar a saltitar de ramo em ramo e de planta em planta. Isso só os fatiga!
Os pintarroxos sustiveram a respiração; o melro, curioso, meteu a cabeçinha preta de lado; os pardais, em coro, soltaram um Ah! Abafado; os verdelhões e os pintassilgos ergueram ao mesmo tempo o olhar.
Que quereria o espantalho dizer com aquela conversa?
-- Decerto perdeu a cabeça... sussurrou um verdelhão.
-- Para mais, tem uma cabeça de palha... – volveu outro.
Aproximaram-se com cuidado. Pretenderia o Baltazar assustá-los com alguma panela?
-- Que estás para aí a dizer espertalhão?
-- Será que nos queres enganar?
-- Olha que não somos para brincadeiras.
-- E é bom teres outros modos…
--Qual quê! – Respondeu o Baltazar – Vocês não estão a ver nada? Olhem bem para mim...
Aproximaram-se ainda mais. Bem, pensaram, isto tem de ter um fim. Voaram ao seu redor à procura de sinais para a solução daquela conversa parva.
Foi então que repararam. Penduradas no Baltazar estavam uns invólucros esquisitos, cheiinhos de coisas boas: um tinha alface cortadinha, outro tinha sementes de girassol, outro tinha figuinhos. Até havia um a transbordar de alpista! Era um regalo para o olhar!
-- Ó Baltazar, tens aqui uma boa refeição. – Disse o melro, levantando a asa.
-- Sirvam-se. É por conta da casa.
Não foi necessário o Baltazar oferecer segunda vez. Em pouco tempo, as suas calças de ganga e a blusa que fora da avó ficaram cobertas das cores dos passarinhos. Até no chapéu cinzento havia saquinhos!
O Baltazar ria-se. Sentia cócegas no seu corpo de palha.
-- Calha mesmo bem a mesa posta a valer. – Repetiam as aves em coro.
-- E amanhã? Podemos contar também com estas iguarias?
-- Haverá todos os dias! – Explicou o Baltazar para os sossegar – O Tiago e a Rita serão sempre os cozinheiros.
-- Vá de rir, vá de encher o papo, que amanhã cá estaremos para ver!
Os pássaros chilreavam alegremente e o Baltazar tinha com quem conversar.
-- Como tenho o trabalho feito até me apetece fazer versos. Oiçam só o que acabei de inventar:

“Neste mundo de trabalho
E de tão estranhos caminhos
Nunca vi um espantalho
Dar de comer aos passarinhos!”

-- Ah! Ah! Ah! Também nunca vimos um espantalho poeta. – Comentou a passarada.
Sentados à porta de casa, os garotos sorriem felizes. O Avô Simão, em sinal de admiração, coçava a cabeça. Vá lá a gente entender a natureza!
E a horta do Avô Simão tornou-se cada dia mais bonita. Até os vizinhos dizem que é a rainha das hortas lá do sítio!

Um grande xi-






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